precisava tomar um determinado remédio efervescente para o coração. O remédio era tão importante, que se ela se esquecesse de tomar uma única vez, sentia pressão no peito, palpitações e cansaço. Minha irmã, muito jovem, ficou impressionada com isso e contou à minha mãe. Naquele tempo não existia Facebook, internet, computador e os adolescentes arranjavam outras coisas para fazer e preencher suas tardes depois da aula. Meu irmão Roberto, nessa época com 19 anos, por exemplo, gostava de mixar música, gravar do disco de vinil para a fita K-7, às vezes alterava a rotação, juntava uma música na outra, coisas dos anos 80... Numa tarde de setembro, meu irmão estava no quarto mudando a velocidade de uma música do grupo australiano AC/DC. Nessa música havia um determinado trecho da letra em
que o vocalista Brian Johnson entoava três vezes o pronome "EU", mas em inglês, é claro: "Ai! Ai! Ai!" Por motivos desconhecidos, Roberto foi diminuindo a rotação da música exatamente nesta passagem deixando o "Ai! Ai! Ai!" cada vez mais triste e cavernooooso. Enquanto ele se divertia com isso, do outro lado da parede, minha irmã estava na sala vendo TV. Derrepente ela parou o que estava fazendo e levantou as sobrancelhas, atônita com aquele som suplicoso, aquele lamento cheio de dor: "Aiii... Aiii... Aiii..." Seu rosto foi ficando comprido e a boca foi se abrindo, levantou-se rapidamente e foi de olhos arregalados procurar minha mãe que preparava o almoço. Ao chegar na porta da cozinha, ela disse aflita: "Mãe... mãe, d. Jurema está passando mal, não está ouvindo? Ela deve ter se esquecido de tomar o remédio do coração!" Ao contrário de minha mãe questionar tão prematura conclusão, ela acabou se aliando às fantasias da minha irmã e rapidamente preencheu as lacunas em branco: "Meu Deus e agora? Ela deve estar aí no corredor se arrastando até aqui para pedir ajuda!!!" Vânia ficou branca como a cera de vela, correu até a porta da sala e enfiou o olho no visor da porta. Minha mãe perguntou aflita, enxugando as mãos no pano de prato: "Tá vendo alguma coisa?" Antes que a Vânia respondesse, Roberto, lá do quarto, distorcia ainda mais a música, fazendo com que o som do AC/DC parecesse os últimos momentos de vida da d. Jurema, agonizante, espumante, com uma das mãos no peito e a outra esticada em direção à porta da nossa sala, clamante de socorro... As duas tontas se olharam e tiveram a mesma reação, encostaram seus ouvidos na porta: "Tá ouvindo alguma coisa, Vânia?" Minha mãe perguntou. A imaginação já era a dona da festa e surpreendentemente Vânia respondeu: "Ela tá dizendo o meu nome..." E começou a produzir as primeiras lágrimas. Minha mãe falou: "Abre a porta, filha!" Vânia não teve coragem de enfrentar tão terrível visão dos últimos momentos de vida da d. Jurema, ali caída, roxinha, possivelmente com seu corpo envolto a gatos assustados... Minha mãe olhou no visor da porta e não viu nada, minha
irmã falou em lágrimas: "Claro que não dá para ver nada, mãe, ela está caída no chão agonizando..." Minha mãe correu para chamar meu irmão: "Roberto, vem ajudar, d. Jurema está morrendo na nossa porta, ela não tomou o remédio!" Roberto desligou o toca-disco e o gravador, abriu a porta do quarto tremendo e, apesar de todos os poderes de Glasgow, do He-Man, entrou em pânico. Só conseguia gritar, gesticulando freneticamente os braços: "Liga pro porteiro, chama o síndico, chama a polícia..." Minha mãe, com o ouvido colado na porta novamente, ergueu a mão pedindo silêncio: "Cala a boca, não estou ouvindo mais nada..." Enquanto seus olhos balançavam de um lado para o outro, como se estivessem ouvindo também através da porta, subitamente olhou para meus irmãos emocionada e disse solenemente: "Ela acaba de falecer! Que droga, na minha porta!!!" Vânia cobriu o rosto com as mãos e chorou. Roberto de pernas trêmulas, ainda perguntou: "O que ela dizia antes de morrer?" As duas, como se ensaiadas estivessem, responderam juntas a mesma frase: "Aaaiii, Aaaiii, Aaaiii..." Roberto riu alto, nervosamente, o que deixou Vânia e minha mãe chocadas por tão terrível falta de respeito à falecida. Ele chamou as duas relutantes até o seu quarto e ligou o gravador. O som que elas escutaram pareceu muito familiar: "AAaaiiii, AAaaiii, AAaaiii..." Diante das duas de boca aberta ele perguntou: "Era isso que vocês estavam ouvindo???" Minha mãe rapidamente apontou o dedo para minha irmã e disse: "Foi ela quem disse que a dona Jurema estava morrendo..." Minha irmã furiosa falou entre os dentes: "Você também ouviu ela gemer..." Finalmente minha mãe foi até a sala, abriu a porta e encontrou o chão vazio, não tinha nada, nem gato, nem d. Jurema, nem uma mortinha se quer... Naquela noite meu pai me escreveu uma carta contando a história da falecida do 1008 e dos três patetas, parando vez por outra para rir muito.
Ricardo Cacilias
02-09-2011
4 comentários:
Adorei a história, pai!
Fiquei com saudade da vovó e dos meus tios...
Lembro bem daquele apartamento e pude imaginar a cena.
Beijo!
Rê
Ricardo querido,
Eu acho você o maximo, estou apaixonado.
Rafa
Renata, falei com o Beto hoje e ele disse que a história está exatamente como aconteceu... O mais engraçado é que é uma história verdadeira.
Obrigado por sua opinião. Beijos filhona.
Papai
Obrigado, Rafa, por tanta empolgação. Como não consegui rastrear você, não sei com que Rafa estou falando. Espero que sua paixão evolua para uma boa amizade...
Eu hein...?!?
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