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domingo, 3 de julho de 2011

CAÍMOS DA LAMBRETA...





Ventava frio naquela noite e os galhos de uma árvore próxima estendiam-se até a minha janela, batiam no vidro como um código morse. Beatriz estava no curso de espanhol, olhei para o relógio e o estomago foi logo dizendo: "São 21:30...". Eu estava recostado sobre os travesseiros da minha cama vendo TV e um cara entrou no Bob's com uma linda morena... Ela sorri e em câmera lenta abre seu sanduíche. De repente ela faz uma cara de surpresa, havia uma aliança sobre  o pão... A câmera dá um zoom em seu rosto, seus olhos brilham como um sorriso até encher toda a tela da TV. Em baixo surge a frase:

                   "AS COISAS ACONTECEM POR AQUI!"

Pensei com meus botões: "Cara, eles falam qualquer coisa pra vender hambúrguer..." Nessa hora senti uma fisgada na cintura... A ponta daquela costela que flutua, deu uma bicada, a mando do coração, para me lembrar da Beatriz ainda na rua aquela hora. Ela deveria estar saindo do curso, sentindo frio e certamente  com fome como eu...
BEATRIZ
A propaganda do hambúrguer me fez lembrar que sou um casal e não apenas um gorila esfomeado! Desliguei a TV e  sai correndo, me apoiando nas paredes do corredor, enfiando o tênis nos pés para resgatar minha prenda... Chegando a encontrei na saído do curso e com ar de cansada. Eu disse: "Oi amor, vim te buscar. Vamos, tá frio..." "Cade o carro?" "A chave ficou na sua bolsa, mas de lambreta é mais rápido..." O trajeto foi tranquilo até chegarmos na São Clemente, apenas a poucos metros para virar na minha rua. Como que materializado de outra dimensão surgiu um caminhão enoooorrrme da COMLURB.1 parado do lado direito da pista. Pensei com meus botões: "Tudo bem é só olhar o espelho e desviar..." Mas tinha uma coisa errada, de uma espécie de torneira gigante jorrava litros e litros de um óleo sei lá qual, sei lá como e sei lá por qual motivo... Beatriz, que é quem pilota a lambreta, falou agitada:"Olha o caminhão!!!" Pensei: "Porra, ela acha que eu piloto de olhos fechados?" Ao perceber que era óleo, o instinto tomou o controle da razão, pois se freasse cairia, se acelerasse cairia, algum movimento brusco cairia e haviam muitos carros passando... Como eu estava em linha de colisão com o caminhão, girei microscopicamente o guidom na esperança de passar raspando e sair dali. E mesmo assim caímos... Sem aderência ao asfalto ficamos igual a um pedaço de manteiga solto dentro de uma frigideira quente. Beatriz foi a primeira, caiu de costas e veio deslisando até parar numa poça de óleo... Eu fiquei agarrado ao guidom com o coração preso entre os dentes, dei quase uma volta inteira no meu eixo e também cai. Arranjei uma poça de óleo para mim também... Mas Deus esticou a sua mão e nos livrou de algo pior do que uma mancha roxa na bunda e aranhões no orgulho próprio. Isso mesmo, meu orgulho de macho se arrebentou todo e foi se espalhando pelo caminho como as peças de um relógio velho... A culpa foi da propaganda do Bob´s, se tivesse sido do McDonald eu teria ouvido: "Eu amo muito tudo isso..." e não teria me dito nada, eu permaneceria em casa quentinho, seco e acolhido pelos meus travesseiros. Mas eles tinham que apelar, e isso me atingiu em cheio. "Você não viu o óleo?" Essa pergunta me doeu mais do que o tombo. "O que você queria que eu fizesse, ligasse as hélices e saisse voando?" "Ai, sujei minha bolsa, minha calça, minha blusa nova..." Beatriz subiu desolada a calçada pingando óleo. Do caminhão não surgiu ninguém, deviam estar abaixados na cabine rindo... Eu, com as pernas tremendo, tentava levantar a lambreta e nenhum FDP veio me ajudar... O mundo é habitado por uma legião de FsDP e uns poucos seres humanos, nessa hora não havia nenhum humano perto de nós. Passei a agir como um gorila enfurecido e faminto. Comecei a gritar, gesticular e a xingar sobre o absurdo que havia acontecido... No meio da minha raiva meus olhos se esbarraram com os dela. Ela estava encolhida e olhava em volta, tentava evitar os olhos dos curiosos. Foi como um balde de água fria. Entendi que um gorila, como eu, não liga para os olhos dos FsDP, mas uma mulher não pensa como um macaco; ela é sensível, se importa, ela fica magoada... Então Beatriz me deu o mesmo olhar que a morena da propaganda fez antes de abrir o sanduíche, o olhar da expectativa. Havia curiosos em volta, os carros buzinavam, o vento estava frio, mas seus olhos pequenos encheram a tela da minha razão e surgiu em baixo desse olhar a frase: "Sou mulher, sua mulher, o que espero de você é que não se esqueça disso". Na mesma hora revi, em câmera lenta, passo a passo dessa merda toda.  Minha cara de idiota assutado caindo da lambreta, a queda dela e meu pescoço virando para trás enquanto caía para ver se ela estava bem, sua bolsa de couro pingando óleo, seu cabelo sujo, seus olhos tristes. Porra, nem um gorila seria tão insensível... Calei a boca, subi na lambreta e estiquei a mão"Vamos embora daqui!" Ela viu que eu havia "entubado" a raiva. Aproximou-se em silêncio, subiu na lambreta e fomos para casa. Que fim de noite!!! 
No dia seguinte dor aqui, dor ali... Lembrei de ter lido uma vez que quando uma coisa ruim acontece, para que não fiquemos com traumas, temos que insistir no uso da coisa que causou o constrangimento o mais cedo possível para desfazer o sentimento ruim. Então disse para a "miss Dayse": "Vou te levar no trabalho de lambreta..." Ao ouvir isso, ela produziu uma inacreditável cara com mistura de "vai a merda" com "some daqui", mas acabou aceitando meus argumentos  e fomos.
No trajeto para a escola, onde ela dá aula, comecei a perceber uma mudança de atitude e que passou a ser um padrão toda vez que andamos de lambreta... Tal qual se faz com os arreios de um cavalo, ela, na garupa, vai puxando a minha roupa na direção que julga ser a correta. Achei esquisito aquilo, mas não disse nada e resolvi obedecer ao cabresto... E assim estamos levando. Ela puxando os arreios e eu fingindo não perceber. Não sei se essa mudança de comportamento é trauma da queda ou se ela arranjou um jeito sutil de me chamar de burro... 
Será?  

Ricardo Cacilias
  03-07-2011
dedicado aos homens que 
sabem preservar a mulher

(1) Empresa de limpeza urbana da prefeitura do Rio