Que fome. Já passa da meia noite e chove muito. Apesar de ser janeiro à temperatura
está agradável. Através da janela de outra pessoa vejo que o céu e a chuva parecem os mesmos, os números do relógio, o som do tic-tac, até o silêncio não mudou, eu é que não me reconheço. Acho que as mudanças fizeram da minha vida seu ninho... Esse casamento desfeito me colocou do lado oposto da porta, agora o olho mágico não aumenta mais as imagens, só as diminui. Dias antes de sair fiz preparativos como se fosse viajar para o outro lado do mundo, mas atravessar a rua sozinho e colocar meus pés na calçada oposto, viria a ser o lugar mais distante que cheguei... Como é difícil desfazer-se de quinquilharias! Durante séculos guardei coisas como se fossem o corpo embalsamado de um faraó da mais nobre dinastia. Um olhar pouco severo me fez ver que as "preciosidades" não passavam de papéis amarelos e objetos de pouco valor. Beatriz quis dividir de alguma forma os móveis, os talheres, as roupas de cama... Nossa! Uma tela de Picasso faria mais sentido do que saquear minha casa e deixá-la banguela, cotoca, desguarnecida. Uma vez escrevi: "A maior conquista de um guerreiro é conservar a sua integridade e os dedos que seguram a espada, pois dependerá deles na batalha do dia seguinte." Com uma caixa de papelão pesada cheia de "preciosidades", caminhei para a porta como se o chão fosse de manteiga, quis dizer alguma coisa, mas estava com a garganta travada! Se não fosse a bruta vergonha que senti na hora, teria chorado como uma criança no seu primeiro dia de escola. Só não queria passar pela porta encurvado... Dez dias antes eu havia ligado para a irmã do meu pai e tivemos a seguinte conversa: Tia:"Alooouu." Ricardo:
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ROBERTO & TIA |
"Oi, tia, sou eu..." "Você
soube que tive que remover-um câncer de pele em meu rosto? Levei
10 pontos!" "Sim, tia, eu soube. Fiquei feliz em saber que correu tudo bem..." "Não
me venha com essa, você foi incapaz de me ligar e nem veio me visitar!" "Eu
sei tia... Olha, foi mal! Tem coisa demais acontecendo. Minha vida está meio confusa... Eu liguei porque estou precisando de uma ajuda." "Ah
sim? O que foi?" "Eu
preciso sair daqui de casa. Preciso de um lugar para ficar por um tempo, apenas enquanto procuro uma casa nova... Posso ficar ai?" A
resposta veio na sequencia: "Mais claro que
não!" "Não?!? Como não? Esse apartamento tem três quartos, a senhora vive sozinha..." Percebi
a tempo que havia ficado nervoso de mais para continuar a conversa e que não
havia considerado a possibilidade de uma recusa. Dei uma respirada e continuei: "Tudo
bem tia... Ninguém é obrigado a abrir a sua casa para os outros, mesmo que
seja para um afilhado... Eu ligo outra hora."
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ROBERTO & RICARDO |
Desliguei.
O universo precisou de poucos instantes para se revelar infinito... Então liguei
para meu irmão, contei a mesma história e ele disse: "Tudo
bem, venha e fique o tempo que precisar..." Foi
quando voltei a sentir o chão debaixo dos meus pés e o formigamento do meu ventre diminuir. Minha cunhada Carla está grávida de um menino e eles
só têm dois quartos: o deles e do meu sobrinho Guilherme. Não que eu me importasse
de dormir no travesseiro do Pateta e me cobrisse com o lençol do Batman, mas
fiquei constrangido com tudo isso e disse ao Beto: "Cara,
fala com tua mulher, a casa é de vocês. Isso tudo é muito chato. Conversem, eu ligo mais tarde..." Desliguei. Já ia me levantar quando o telefone tocou, era minha tia: "Tudo
bem, pode vir, mas não deixe de procurar uma casa para
você, ninguém deve viver de favores..." Pensei na hora: "Minha
viajem para o outro lado da calçada está apenas começado..." Dez dias depois, aqui
estou, na casa da minha tia, olhando pela janela de alguém a chuva que pertence a todos, revendo meus
filmes em preto e branco, colecionando perguntas e poucas respostas. É engraçado ser tratado como criança. Minha tia tem 82 anos e muito lúcida, mas esquece que já passei dos 50. Agora a pouco tomei banho e me vesti para sair e comer alguma coisa, no meu caso tristeza abre o apetite. Para ser discreto saía pela porta dos fundos até ser sacudido por uma voz: "Onde você vai?" "Vou
comer alguma coisa..." "Bobagem, tem tudo
em casa. O que você quer?" Fechei a porta e fiquei até emocionado com esse carinho... "Sei
lá, eu... Quem sabe um bifão mal passado na manteiga com bastante cebola e um copo de coca gelada!?" Minha boca fez água e meus
olhos se expandiram com a testa que os puxou... "Vai
pra sala!" Minha tia seguiu para a cozinha e fui me sentar a cabeceira da mesa. Meus olhos flutuavam pela sala, um forte tic-tac vinha de um relógio antigo atrás de mim, olhei para os
quadros desalinhados, para o arranjo de bibelôs de cristal na estante e as cortinas balançavam em câmera lenta. Pensei na minha casa "do outro lado da calçada", senti um imenso vazio e a sensação de ter deixado braços e pernas na casa antiga era muito forte. O silêncio fazia parte da decoração, exceto pelo som da chuva forte chocando-se contra as vidraças. Fiz um trato comigo mesmo, não importava como
chegasse o tal bife, ele seria elogiado como se fosse a carne mais gostosa do
mundo. "Que fome!" Minha
tia entrou na sala com ares de formalidade, tinha as mãos uma bandeja de prata manchada e mal polida. Colocou as seguintes coisas diante de mim: Meio pacote de biscoito cream-cracker, uma latinha de atum no
óleo, um concentrado de manga, uma garrafa com água, uma cambuca de gelo e disse: "Não tenho carne, mas tenho esse atum
maravilhoso. Sempre guardo uma latinha em casa para uma emergência... Tudo
bem?" Minha consciência se agarrou a minha língua e meu coração o microfone da alma e respondi: "Claro, tia!... Eu adoro atum em lata..."
Feliz 2012, vou
procurar fazer o mesmo.
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11-01-2012 |