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A eternidade é o
momento que se renova
Nosce te ipsum
Conhece a ti mesmo
γνωθι σεαυτόν
γνωθι σεαυτόν
Eu não tinha nascido, mas já existia dentro de meus pais. Meu pai já morreu e minha mãe está doente, mas são eles agora que vivem dentro de mim. Dias depois da minha mãe ter tido um sério problema de saúde e eu e meus irmãos termos sido chamados às pressas no asilo onde ela fica, eu estava sentado à mesa da cozinha na casa da minha tia. Era tarde da noite e tinha meu olhar perdido no vapor da minha caneca de café enquanto ela virava nuvem... Minha tia veio lá de dentro tão suavemente que a sensação que tive foi que ela se materializou na minha frente. Ela se sentou do meu lado e vendo que eu estava entregue a pensamentos, do nada começou a me contar como meus pais haviam se conhecido... Eu só conhecia os contornos dessa história, mas em silêncio e aquecendo a língua com café, ouvi detalhes que desconhecia. Meu pai trabalhava na capital de São Paulo, morava numa pensão simples na Avenida São João. Minha mãe era do Espírito Santo e depois que minha avó morreu em 1954, ela veio para o Rio morar na casa de um dos meus tios. Vidas em movimento que me buscavam. Meu pai nunca teve o convívio de uma família, meu avô colocou-o num colégio interno quando ficou viúvo, pois o talento para ser pai lhe escapava. De tempos em tempos meu pai vinha ao Rio visitar sua irmã. Minha tia, sempre muito vaidosa, um dia descobriu que próximo a sua casa morava uma costureira capixaba de mão cheia e de bom preço para formar clientela. Foi assim que minha tia conheceu minha mãe. Com o tempo minha tia foi se afeiçoando àquela moça que gostava de contar histórias da sua terra, que sabia cozinhar, costurar, cuidar de uma casa e era solteira. Tinha os olhos mais azuis do que um céu sem nuvens numa manhã de verão, sua pele parecia pintada de neve, seus cabelos eram castanhos claros e desciam encaracolados sobre seus ombros, às vezes ela deixava escapulir um olhar distante, meio triste, meio de saudade, sua voz era suave e doce... Nunca foi o grande projeto de vida do meu pai ser rico, de seguir carreira, de ser erudito, o que ele mais queria na vida era ter uma família! Comecei a existir quando minha tia decidiu casar meu pai com minha mãe. Minha tia escreveu uma carta para meu pai no início de agosto 1956: "...Uma linda moça de pais italianos veio morar aqui perto na casa do Paresqui; lembra dele? Aquele alto que você achou metido? Pois não é que a moça é irmã dele. Ela é de boa família, uma moça para casar, e deve ser fértil, ela tem 12 irmãos... Quando vier da próxima vez vou te apresentar a Malvina, mas não demore, moça assim não costuma ficar solteira por muito tempo..." Voltando do correio minha tia foi fazer uma visita à vizinha costureira: "Tenho um irmão trabalhador que está ganhando muito dinheiro em São Paulo. É um rapaz honesto, sério e responsável... Infelizmente ainda não encontrou a moça certa... Você quer conhecer o meu irmão Gelson?" Cada vez que minha tia dizia o nome do meu pai ela levantava o queixo... dava a ideia de que meu pai era um gigante! E mais cartas foram seguindo para São Paulo e na volta do correio outras tantas visitas eram feitas à costureira para falar mais um pouco do seu irmão Gelson. Assim nasceu o interesse de um pelo outro. Eles se apaixonaram pelas descrições que minha tia fazia deles. O coração da minha mãe, menina simples do campo, católica apostólica romana, deve ter emprestado a imagem do guerreiro São Jorge, matador de dragões, aos contornos de tudo que ouvia do meu pai... Por outro lado meu pai estava certo de que havia encontrado a porta que o levaria à sua família, afinal... Chegou o grande dia da vinda de São Jorge ao encontro de Lady Godiva. Era meados de outubro, manhã de sábado. Minha mãe estava na sala sentada na poltrona, de frente para minha tia tomando café, quando minha tia abriu o maior sorriso olhando para a porta. Meu pai havia chegado de São Paulo e ainda de mala na mão disse parado na porta: "Tem café para um viajante?" Minha tia se levantou rápido e minha mãe com o coração pulando, virou-se para ver meu pai, mas para sua enorme surpresa, meu pai tinha a mesma altura dela, ou dois dedos mais alto como eu sempre a ouvi dizer: 1,58 m. Acredito que não era exatamente o corpo que minha mãe esperava, mas meu pai se apaixonou por minha mãe no momento em que seus olhos azuis cortaram seu coração em duas partes, onde uma metade ficou com ele e a outra metade pulou para o lado do coração dela; nem um guerreiro lutaria contra aqueles olhos, certamente seria pecado. Então meu pai passou a lutar como Jorge para defender o sucesso daquele encontro. Falou, argumentou, sorriu, gesticulou, emudeceu em contemplação... Por fim, naquele mesmo dia, meu pai convidou-a para que fossem tomar um lanche na Confeitaria Colombo no Centro da cidade. Voltaram horas depois noivos e de anel no dedo, se casaram 3 meses depois e minha mãe foi morar em São Paulo. Nessa parte da história eu já estava de xícara vazia e de olhos úmidos... E pensei nos meus pais, não como pais, mas num homem e numa mulher que se desejaram e viveram juntos por 35 anos. Muitas vezes, para não dizer sempre, enxergamos nossos pais como parte integrante de uma instituição familiar, esquecemos que eles são como nós somos, pessoas. Que tiveram seus caminhos e encontros para que nós viéssemos a ter, por nossas vez, nossos caminhos e encontros com o destino.
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Ricardo Cacilias
dedicado a minha alegria de
saber que meus pais se amaram muito