O pai e o "cara" |
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BEATRIZ |
Dentre meus filhos, Felipe está atravessando
aquele cinturão de asteroides que gira em torno do processo de
amadurecimento, entre o quase ainda sou menino e o quase já sou homem. Beatriz,
sua mãe, diz que para o homem é mais difícil do que para a mulher atravessar a
adolescência, acho que concordo com ela... Num dia desses eu estava no trabalho
caçando "mamutes", quando ouvi uma criança chorar de um jeito muito
semelhante como Felipe fazia quando era pequeno... Nossa! Viajei naquele choro! Minha mente se
estremeceu e as rugas que o tempo me desenhou na face amenizaram. A luz em
volta foi se apagando enquanto outra surgia através de um zíper gigante
que rasgou o ar em minha frente. Viajei no tempo. Fui parar numa tarde de 1994.
Felipe está chorando ao meu lado, ele quer alguma coisa; Felipe sempre quer
alguma coisa... Ele tem uma cara redonda e cor e cheiro de canela, muito lindo!
Eu, Beatriz e nossos filhos estamos na praça de alimentação no shopping
Rio Sul em Botafogo. Felipe tem quase dois anos. Havíamos
acabado de almoçar um suculento file mignon com molho de
chapingon na manteiga. Que delícia! Estava satisfeito e sorridndo quando ouço um som aterrador... Parece a turbina de um jato com problemas. Felipe acaba de encher de maneira cinematográfica sua
fralda com toda a sonoplastia própria
dessa tragédia. Nossos olhares chocam-se no ar, os
meus e de sua mãe. Ela tem que dizer a maldita frase: “Aaaah não! Eu já fui hoje, agora é a sua vez...” Um gelo me corre a espinha. Diante da rudeza do momento e de tal
altivez da afirmação de que era minha vez, não tive alternativa e nem palavra,
levanto-me, pego a mãozinha desse menininho e vamos em direção ao banheiro... No caminho repasso mentalmente, passo-a-passo,
como fazer para sair dessa situação rapidamente e sem dor. Chegamos
ao banheiro, para avaliar a situação, tenho a estúpida ideia de me abaixar
e puxar o elástico da sua fralda para avaliar a extensão do
estrago. De imediato o vapor do mau cheiro me atinge em cheio o rosto, meus
olhos choram ardidos. Meu corpo se contorce, tenho convulsões... Palavras
sem nexo saem da minha boca e acabam substituídas por grunhidos; só paro quando
os espasmos involuntários dominam meus ombros e depois meu copo
inteiro... Pergunto-me aturdido como pode uma criancinha de
2 anos produzir tamanho horror??? Coloco Felipe sobre a bancada de granito
onde há várias pias, tiro seu tênis e as meias, faço um enroladinho de
cada uma e guardo. Depois tiro sua calça curta sem deixar que se suje. As pessoas
entram e saem do banheiro, mas eu me sinto sozinho no Mundo; a quem posso pedir
ajuda? “Amigo, por favor, pode me ajudar a limpar essa
bosta???” Bosta de filho pertence aos pais! Nesse caso ela é toda minha. Sem
alternativa encaro o problema. Prendo a respiração, puxo as fitas que fecham sua fralda, e vou enrolando-a até formar um embrulho. Uso as próprias fitas para lacrar tudo.
Abro a torneira da pia e jogo água... Felipe
permanece quieto e resignado, mas faz uma coisa que eu não esperava, coloca a
sua mãozinha gordinha sobre a minha e diz: "É coco papai!" E respondo resignado: "Eu sei, filho, tô vendo!!" Meu coração incha nessa hora, entendo que eu não estou diante de um
problema, mas com meu filho de 2 anos... Então Ele chega, acho que até atrasado, o "pai" que me habita. Ele bate no meu ombro e diz: "Deixa comigo, eu assumo daqui..." Levanto com alegria e digo para ele: "Por favor, fique a vontade..." Ele começa a
lavar o Felipe com todo o carinho, conversando com ele, brincando, curtindo...
O "cara" até dá umas ideias: "Aí, usa o sabão líquido..." O "pai" ri e aceita a sugestão. Num instante
Felipe está todo ensaboado com o líquido de sabonete da pia do banheiro do
shopping. Fica limpinho e até cheiroso. Mas como secá-lo? Só havia aquelas
máquinas presas na parede que jogam ar quente. O "cara" diz: "Já sei o que vamos fazer, me dá ele aqui..." Então o "pai" observa o "cara" virar Felipe
de cabeça para baixo deslizando o bundão no ar quente e rapidinho ele fica seco.
Só faltou o talco... Com a supervisão do "pai" e as ideias do "cara", Felipe volta para a mesa limpo, cheiroso, com os devidos "pai" e o "cara" orgulhosos com ares de dever
cumprido. Que saudade!
THAÍS, RENATA, FELIPE E MARCELO OUTUBRO DE 2004 |
Ricardo Cacilias
03-08-2011
03-08-2011