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domingo, 11 de agosto de 2013

ÓRFÃO DE SONHOS


Baseado em fatos reais





O tempo é um personagem passional de nossas vidas, parece ter vida própria com um senso de humor muito questionável. Quando queremos pressa, Ele se arraaasta, quando queremos viver o mais longo minuto da nossa vida, só recebemos segundos escorregadios...
Quando você estiver lendo esse texto, eu estou neste momento em algum lugar do seu passado, transformando tinta fresca em palavras que vão me surgindo; enquanto que você está no meu futuro deslisando seus olhos em minhas tintas já secas há muito tempo... Somos prisioneiros do cárceres da continuidade. É madrugada do dia 11 de agosto de 2013, hoje é Dia dos Pais e meus filhos estão longe... Há algumas horas meu sono saiu porta a fora e disse para não esperá-lo. Bastardo! Desde a minha adolescência desejava ser pai, e essa "entidade" foi gerada dentro do meu entendimento, durante os nove meses em que minha mulher gerava nossa filha. A mulher já nasce com um útero maternal, quanto que nós, homens, precisamos achar dentro de nós um espaço para esse "pai" existir. Quando senti pela primeira vez o gosto de ser pai, esse ser passou a morar no meu melhor conteúdo, e nunca mais me abandonou... Há dois dias eu e o "pai" que me habita caminhávamos pela Rua Major Ávila, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, e me deu vontade de comer um pastel daqueles 
crocante. Entrei na primeira pastelaria e fiz o meu pedido. Estava ávido a morde-lo; quente, cheiroso e de queijo derretido, quando senti uma mão me bater nas costas duas vezes acompanhada de uma voz de criança dizendo: “Tio, pode me pagar um lanche?” Tio? Odeio essa expressão!!! Na hora o incomodo da interrupção me fez responder de pronto, de forma seca e aborrecida: “Só tenho dinheiro pra pagar esse!” Era mentira, claro, só queria me livrar do guri. Nessa hora dei uma olhadinha de canto de olho para o lado, e vi uma criança negra, uns 10 anos no máximo, com chinelos gastos, roupas manchadas e um olhar sem expressão e distante. Ainda deu tempo para ver seus olhos baixarem de vagar e fazerem a curva no rosto para ir embora. Senti uma fisgada no coração como uma bicada de um pelicano num peixe preso em suas patas, a mesma sensação que se sente ao cortar o dedo numa folha de papel. Então o "pai" que me habita me empurrou para o lado, afastou com suas mãos meus dentes, colocou a cara para fora e falou: “Peraí, volta...” O menino, já do lado de fora da pastelaria, ao virar-se, deixou aparecer outra criança segurando suas mãos, um menininho com três ou quatro anos, lindo, com olhar sapeca, do jeitinho que eu adoraria ser o seu avô. Ainda surpreso por ver a segunda criança, o "pai" continuou a sua frase: “...peçam ai o lanche que você quiserem.” O menino mais velho entrou na pastelaria puxando o outro pela mão; não sorriu, não mudou os desenhos do rosto, antes, porém, apressou-se em apontar para o balconista, que a tudo acompanhava fingindo estar distraído, o salgado que desejava. O chinês-coreano-japonês-sei-lá-o-que olhou para mim e perguntou: “Quem vai pagá?” Eu disse: “Pode dar, eu pago...” E completei dizendo: “Dá outro salgado pro menorzinho também.” Até agora lembro com uma distinta emoção, os dedinhos da criança menor dedilhando o ar para alcançar uma simplória coxinha de galinha. Os meninos estavam para sair quando o "pai" perguntou: “Não vão beber nada?” O mais velho teve a mesma pronta reação ao pedir o salgado, sem perda de tempo, sem chance de alguém mudar de ideia; tão jovem e já aprendeu a não desperdiçar suas oportunidades. Pediu o mesmo que eu estava bebendo, caldo-de-cana. O chinês-coreano-japonês-sei-lá-o-que me perguntou: “Dois?” Nessa hora eu pensei na carteira e achei melhor dizer: “Não. Apenas um copo de caldo...” Então ele virou-se para a sua máquina impessoal que destroça canas, apertou um botão, e com um barulho mal humorado que as máquinas tem, foi separando o bagaço do caldo. Ele pegou um copo de plástico, encheu até a borda e colocou sobre o balcão. Percebi uma mudança no semblante daquele oriental, ele vacilou por um momento, fez cara de quem estivesse lembrando de alguma coisa. Então pegou um segundo copo e encheu de caldo também. Colocou os dois copos diante das crianças. Elas se serviram e foram embora sem olhar para trás, sem um sorriso, sem um obrigado, sem despedidas, sem dizer seus nomes; mas eu estava satisfeito por ter feito alguma diferença, ainda que por 10 minutos, na vida daqueles dois. Então fui pagar para ir embora, seguir a minha vida. O chinês-coreano-japonês-sei-lá-o-que apresentou uma conta sem o segundo caldo de cana que havia entregue as crianças, ou seja, ele deu por sua conta para os meninos.
Nos olhamos rapidamente numa discreta cumplicidade, numa linguagem muda de reconhecimento e gratidão. A maldade divide, fragmenta, pulveriza, desfaz, mas o amor multiplica. Só posso dar o amor que tenho, pois o amor do meu semelhante a ele pertence e é quem decide se ele irá florescer ou morrer na semente... Hoje é dia dos pais e aqueles meninos, há dois dias, me deram por antecipação um lindo presente.



11-08-2013