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domingo, 22 de julho de 2018

UM EXÉRCITO DE FORMIGAS

Baseado em fatos reais




T

alvez você não se dê conta, mas durante o tempo em que eu escrevia esse texto e durante a sua leitura, em muitos lugares, um pequeno exército de formigas - pessoas anônimas, sem rostos, sem capa de revista, sem flashes, estará cruzando as ruas, nos hospitais, nos centros de tratamento de viciados, em asilos, orfanatos, em comunidades carentes... doando de maneira gratuita o seu tempo e o seu amor. Aqui em Macaé não é diferente. Há algum tempo eu sentia vontade de fazer coisas também, materializar o evangelho que tenho buscado, exceder da palavra a ação, apalpar a fisiologia das letras que descrevem os ensinamentos de Jesus, mastigar sua filosofia e conhecer o sabor da caridade; viver um amor diferente. Fazia tempo que eu desejava sentir a liberdade que a doação nos proporciona, de fazer alguma coisa boa por alguém que não me trouxesse ganhos, para alguém que eu não tivesse laços de família ou para um amigo. Fazia sim, algum tempo, que eu sentia estar devendo a minha parte nessa ação, devolver um pouco o tanto que tenho recebido. Eu não me sentia devedor a um conceito religioso, ou cobrado pelas letras das escrituras espalhadas nas páginas do grande livro, ou devedor de um personagem que tenho ouvido e sabido que viveu e morreu em tempos muito distantes e que falava sobre a boa vontade entre os homens. Não! Esse sentimento que crescia dentro de mim, florescia adubado pela gratidão. E essa gratidão me questionava: “Não vai retribuir? Não vai retribuir pelas pernas e braços perfeitos? Não vai retribuir pela água quente que jorra do teu chuveiro no inverno? Não vai retribuir pelo teto que te abriga, pela comida que nunca faltou em tua mesa e pelo perfume dos lençóis de tua cama? Não vai retribuir pelos filhos maravilhosos que chegaram, pela mulher amiga e companheira que Deus te incumbiu de cuidar e nem pelos pais especiais que teve? Não vai retribuir pela saúde decente e pela fila de oportunidades que sempre bateram a tua porta?" Nesses quase 60 anos de caminhada, quantas ondas me derrubaram, quantos tombos me desmontaram, quantas trevas me cercaram e me deram um abraço de urso enfurecido e a tudo e sempre Ele tem me resgatado. Ele tem colocado meus pés sobre rocha firme e dito em meus ouvidos: “Vai passar, não desanime. Levanta e segue...” Ah, que alma enrugada e imperfeita eu tenho, quanta miopia e egoísmo me servem de travesseiro à noite e de sapatos pelas manhãs, mas se posso dizer algo de bom sobre mim, digo do quanto de gratidão sinto em minha alma. Essas palavras são bonitas de serem ditas, de falar numa conversa entre amigos, bonitas só de pensar nelas, mas existe uma coisa entre a palavra e a ação que se chama realidade: a realidade é suarenta, toma o nosso tempo e nos cansa, na realidade as distancias são vencidas com muitos passos, ela é exigente, tem os seus cheiros e seu peso, na realidade os conceitos são colocados em prática, quase sempre as coisas se desenrolam na sua dinâmica própria e não como eu idealizo e gostaria, na realidade é preciso saber desviar das balas e de improvisar. A realidade é o campo de batalha, é a tempestade onde conhecêssemos o bom marinheiro... Há um ano e meio eu me uni a um grupo que já levava refeições nas noites de terças-feiras a moradores de rua. Então, ainda que fosse muito muito pouco, passei do conhecimento das letras a realidade da ação. Digo ser muito muito pouco, porque são apenas algumas horas de um dia da semana, algumas horas de um mês inteiro, mas não permito que esse pensamento da quantidade de horas desfavoreça a sinceridade dessa ação. Somos um grupo compacto que às vezes se alternam, mas quase sempre somos eu, Francisco, Carlos, Cláudio, Alexandre, Maurício, George, Márcio, nomes apenas, formigas a serviço de Deus... Durante a tarde um grupo de pessoas cuida do preparo dos alimentos, e nós somos o grupo da entrega. Como disse, um Exército de Formigas carregando nos braços o que consegue carregar. Saímos em dois carros e levamos de 100 a 120 refeições que quase sempre é constituído de arroz, feijão, tipos diferentes de carnes, legumes, acondicionados dentro de um recipiente de isopor com tampa e uma garrafa de meio litro de água mineral sem gás. Lembro da primeira vez que saí com o grupo em fevereiro de 2017, minha gratidão ia me empurrando pra frente, cheguei a pensar que teria sido melhor ter ficado em casa diante da TV, para ver as coisas de sempre, olhando as horas de sempre passarem, acolhido pelo hipnótico déjà-vu da rotina, mas o meu egoísmo e covardia não eram mais fortes do que o meu sentimento de gratidão. Fui arrebatado por um misto de sentimentos quando
entreguei pela primeira vez o jantar nas mãos de um morador de rua, na hora me veio à mente que as cartas do baralho da vida fizeram com que não fosse eu ali sentado sobre papelões, agradeci a Deus por ser das minhas mãos que saía a refeição e não por estar com os braços estendidos para recebê-la... Era um homem, mais velho do que eu, barba rala, olhar sem brilho, maltrapilho, cabelos em desalinho; um homem. Pensei: “Meu Deus, como alguém pode chegar nesse ponto num país riquíssimo como o nosso, numa cidade que se intitula “A Capital Nacional do Petróleo?. Ele pegou a refeição, agradeceu com um gesto de cabeça e esticou sua mão direita para apertar a minha. A realidade foi se chegando mais perto, agora tinha um rosto, uma figura física, um cheiro, uma identidade. Olhei para aquela mão suja, fedida, azeda; senti nojo! Um sopro me refrescou a mente, me
veio a lembrança de quantas mãos sujas e fedidas Jesus apertou, quantos corpos doentes com seus espíritos destruídos foram reconstruídos com o seu abraço fraterno, quantos olhos opacos e sem expressão foram ressuscitados pelo olhar do filho de Deus; quem era eu que poderia ser melhor do que Jesus, puxar minha mão e esconde-la dentro dos meus preconceitos? Ainda que sentisse repulsa, minha gratidão esticou meu braço e cumprimentei aquele homem. Umas terças-feiras depois, com o espírito um pouco mais crescidinho, era eu quem dava a mão para cumprimentar todos a quem eu me aproximava. Num outro dia, depois de termos entregado a comida, já estávamos prestes a seguir adiante, quando o morador de rua perguntou se não iríamos fazer uma oração(?); como sou miudinho, não havia pensado nisso! Olhei para o Cláudio, para o Maurício e mais alguém que estava junto e arregalei os olhos, como quem pergunta: “E agora? Quem vai orar?” Cláudio esticou o queixo na minha direção, entendi que seria eu mesmo. Hesitei um pouco, mas coloquei minha mão sobre o ombro daquele homem, ele puxou com a mão esquerda o seu boné, o amassou entre as mãos e abaixou a cabeça; estar ao vivo e a cores diante da realidade me mostrou na prática que não é mesmo só do pão que vive o homem; e orei: “Senhor nosso Deus, Jesus seu filho amado, obrigado pela oportunidade que eu e meus irmãos estamos tendo de estarmos aqui agora, unidos em oração com esse homem. É com muito respeito que trouxemos esse alimento, que essa comida fortifique o seu corpo e principalmente o seu espírito. Pedimos, oh Deus, que seus anjos estejam acampados ao redor dele, protegendo contra a maldade da rua, do frio, das doenças e do desânimo... Senhor abençoe este homem e a sua família, onde o Senhor bem sabe onde está. Obrigado meu Deus por essa noite única e especial, agradecemos em nome de Jesus. Amém!” E quase ao mesmo tempo ouvi todos dizerem amém. A voz foi minha, mas a oração foi nossa, cada um doou um pouco da energia do amor e da caridade; fomos nós cinco, seis com Jesus, um só corpo. Sempre antes de sairmos para cobrir um roteiro previamente planejado, oramos pedindo que os anjos sigam a frente abrindo espaços para nós, oramos pedindo proteção por estarmos expostos na rua, indo em cantos escuros, na cracolândia, atrás do muro da linha do trem... Aqui em Macaé, entre 20hs e 22hs, não tem muita gente na rua. Ficaria bonito eu dizer que nunca senti medo, mas a realidade experimenta a nossa vontade, a nossa fé, nossos medos; sou apenas um homem de alma enrugada e imperfeita, de muita miopia e egoísmo que me servem de travesseiro à noite e de sapatos pelas manhãs, mas que está procurando alimentar a sua fé. Se Jesus gritasse para que eu pulasse para dentro de um buraco escuro, mas que estaria lá dentro para me pegar, não sei se pularia, mas sei quem está gritando... A fé é com uma criança, quanto mais a alimentamos, mais ela cresce em força e formosura. E assim passou a ser, nas terças-feiras a noite, divididos em dois carros e entre 6 a 8 pessoas, a minha participação nesse grupo de caridade, acreditando na justiça desse propósito. Teve um dia em especial que me marcou muito, nem foi numa terça-feira, nem era dia de distribuir refeições, mas essa história será contada na sequência UM EXÉRCITO DE FORMIGAS - A GUERRILHA. 
Obrigado.


17-07-2018




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