Esse título está politicamente errado, pois aqui no século 21 não nos referimos a uma pessoa por sua característica física, nem religiosa, raça...
Mas meu suposto leitor... nos anos 70 os adolescentes faziam essas maldosas referencias exatamente sobre alguma característica pessoal de alguém. Hoje tenho 52 anos e estou nos anos 10 do século 21. Sou descolado, tenho um entendimento diferenciado do mundo, me considero um cara legal, alguém que você gostaria de conhecer. Gosto de falar, de ouvir, gosto muito de ser gentil com as pessoas, mas confesso que nem sempre fui assim...
Numa noite de sábado, num setembro de 1976, eu com 17 anos e os hormônios andando sobre meus ombros como formigas, fui ao baile com a minha patota maneira. Era assim que se chamava a nossa reunião de sábado a noite dançante - baile! Tocavam Slade, Elton John, Gary Gliter..., e a patota composta de adolescentes com três fios de barba na cara e um drops Dulcora enooorrrme no bolso, ficavam um desafiando o outro a chamar aquela mina pra dançar. Era divertido. Era curtição. Eu não tinha contas para pagar, eu não tinha o elemento filho para me preocupar, eu era de todas e de ninguém... Comigo éramos cinco caras e naquela altura da noite todos já tinham dançado com alguém, menos EU.
Meu solitário leitor, os caras do século 21 inventaram uma coisa sensacional chamada de FICAR!! Isso é bolação de homem e as meninas ainda não perceberam isso. Ainda me dói tentar entender o que é ficar, ou melhor, tentar aceitar... Pois naquela merda dos anos 70, para ficar com alguém você tinha que namorar a guria, aturar o seu irmão chato e a cara esquisita do seu pai... Sem falar naquele maldito cachorro que vinha cheirar suas partes pudicas e você ficava com cor de berinjela diante da família dela...
Deixa pra lá!
Como estava dizendo, todos já tinham dançado com alguém, menos EU. Me zoaram imperdoavelmente... Tá com chiclete de coco?...hahahaha, não tomou banho hoje?....hahaha. Oferece dinheiro, quem sabe?...hahaha Então vociferei irritado: Vocês vão ver... vocês vão ver a mina que vou arranjar!!!!! Seus fdp!!! Os risos viraram gargalhadas, e gargalhada de adolescente é maldita, você sabe... Prima não vale....hahaha Fiquem olhando para mim, fiquem de olho em mim...Eu não devia ter dito isso! E me afastei do grupo...

Me afastei e sentei no chão num canto encostado na parede. Os minutos viam e iam até começar a tocar Evie do Johnny Mathis, era o tema de abertura do jornal HOJE da TV Globo que começava a 1 da tarde. As meninas suspiravam, os caras também, mas era inconfessável tal viadagem...
Nunca fui muito bonito, por isso precisei aprender a arte da argumentação, chacoalhar o charme e temperar meu sex apeal...
Logo no início dessa música olhei para o lado (o adolescente dessa época parecia um ventilador, olhava de uma lado para outro o tempo todo), e vi uma menina olhar direto no preto dos meus olhos... Ainda olhei para o lado, pensei que poderia ser outro cara... Não tinha ninguém do meu lado... Ela estava olhando para mim!!!... As sirenes tocaram e meu sorriso apareceu tão lilás e fosforescente como a “luz negra” que se usava na época...
No meio daquela música alta eu disse Oi. Eu sentado no chão ela em pé próxima de mim. Ela disse Oi, ou pelo menos pude ler nos seus lábios. Aí levantei! E como um guerreiro que se lança num ataque a sua presa, confiante, garboso, e decidido, cheguei bem juntinho dela e perguntei caprichando na voz grave: Quer dançar?
Dançar era muito legal, pois era o jeito de você chegar seu corpo junto de uma menina ainda que não estivesse namorando com ela. Sentir seu perfume, trocar algumas palavras, quem sabe um beijo... Waallll era muito legal.
Quando fiquei de pé a primeira constatação, ela devia medir um pouco mais de 1,45, sentado e no escuro não avaliei bem. Ela não me tocou, me deu um nó de gravata na cintura, aí meu sinal amarelo acendeu, algo estava fora do tom. Para completar ela tinha uma perna menor que a outra, bem menor. Parecíamos um barquinho rebocador vencendo as ondas na tempestade, agente caia para um lado e depois tombávamos para o outro... E preso pela cintura eu tinha que fazer o mesmo movimento montanha russa com ela...
Um gelo me correu a espinha: Fiquem olhando para mim, fiquem de olho em mim... meus amigos!! A cada inclinação eu procurava olhar para os lados, até que avistei todos os quatro rindo e me apontando... Era o fim dos tempos, o próprio armagedom, isso iria se espalhar pela escola, pela rua, pelo país quiçá o mundo inteiro ficaria sabendo...
Depois de uns dois minutos e já bem enjoado ela me perguntou: Qual é o seu nome. Eu disse: Joaquim... Que lindo nome, é o nome do meu avô. Você mora por perto? Eu sou de São Paulo... Ah... Como iria sair dessa situação sem magoar a guria?? Depois de três infinitos minutos daquela maldita música ela falou de novo: Vamos dançar a próxima também? Eu já estava pronto para dizer que iria ao banheiro, quando a outra música começou e ela me apertou mais um pouco. Achei que iria passar o resto da minha vida ali... A 2ª música estava quase acabando e me vi dançando a terceira, a quarta, a quinta... não tive saída, precisava fazer alguma coisa e fugir a pé para o Cazaquistão. Lancei mão do Plano Infalível nº1 que detona qualquer relação indesejada, sempre mencionada teoricamente na roda de amigos, mas eu nunca soube de alguém que tenha usado...
Coloquei os miseráveis atrás de mim enquanto dançava para nada verem, fiz um olhar languido porem severo para ela e disse puxando as vogais no seu ouvido: Como é seu nome?
Ana Maria. Então entrei atirando. Aninha eu sou gay e estou muito sofrido porque o meu bofe está dançando com outra garota....o que que eu faço...??? Falando e fazendo beicinho... Ela afrouxou o nó nas minhas costas e faltavam poucos segundos para começar a terceira música. Gay? O que é gay??? (era uma palavra nova para os anos 70). Não arredei, comecei vou até o fim e falei solenemente levantando a sobrancelha. Viadinho amor! Viadinho! Ela me soltou... A máquina de lavar roupa enfim parou. Ela foi se afastando confusa, 1/2 sorriso, mechendo no cabelo, sem graça e mancando foi sumindo no escuro do baile...
Meu imaginário leitor, é constrangedor confessar, mas numa noite fria de setembro de 1976 fui por 15 segundo viado....e meu pai deve estar de bruços na sepultura com essa estória!!
E os amigos?? Que amigos?!!?...
Direto do Humaitá lembrando o Méier,
Ricardo Cacilias
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EVIE
Para os cinquentões como eu,
vamos ouvir a música da tragédia...
vamos ouvir a música da tragédia...