Continuação do texto:
Ladrão de Criança - Parte 1
“Parecia uma miragem olhar para aquele espaço vazio
onde antes estava o ônibus que eu iria com minha família para o Rio. Fui
tomado por um estado de patetice profunda, afinal eu não sabia o que havia
acontecido, onde estava Tere e o que eu iria fazer em seguida?... Foram poucos
segundos onde me senti a pessoa mais perdida do mundo. Enquanto pensava, foi se
aproximando um homem jovem, uns 20 anos talvez, empurrando um carrinho de ferro
que usava para carregar bagagens de passageiros para um taxi ou o que seja. Ele
parou do meu lado e perguntou”: – Tá procurando aquela moça? “Olhei para o
sujeito sem entender nada...” – O que disse? – Tá procurando aquela moça que
estava contigo? “Fiquei espantado de ver como somos observados e temos nossos
movimentos acompanhados sem nos darmos muita conta disso.” – Sim. Sabe onde ela está? – O
motorista disse a ela que não iria poder esperar mais, que tinha que cumprir o
horário ou seria chamado a atenção. Alguns passageiros desceram do ônibus perguntando
o que estava acontecendo, aquela moça contou que você tinha ido ao juizado. O
motorista subiu no ônibus e ligou o motor. Os passageiros foram subindo e uma
senhora falou para ela: – Vem também, não perde a passagem, ele vai amanhã em
outro ônibus... “Fiquei zonzo com essa história...” – E o que ela fez?
“Perguntei já com medo da resposta.” – Ué, ela entrou e foi embora... “A única
palavra que me veio à cabeça naquele momento foi: pu-ta-que-o-pa-riu! O ‘cara
da mala’, que viu tudo acontecer desde o início, deu uma ideia” – Não faz nem
10 min que o ônibus partiu. Vai até a entrada da rodoviária e pega um táxi, se
o motorista for ligeiro você alcança o ônibus na rodovia Osório Porto Alegre antes
de chegar a Cachoeirinha. “Parecia à ideia mais estúpida do mundo, eu sem
dinheiro, sem documentos, a Renata dormindo no meu ombro, mas foi o único plano que surgiu. Agradeci aos dois e fui para o ponto do táxi. Procurei o motorista mais
velho, assim teria sua sensibilidade do meu lado”. – Bom dia, senhor. Eu perdi
o ônibus que saiu agora a pouco da rodoviária. O senhor tem como
alcança-lo? “Achei que estava dizendo a coisa mais sem pé nem cabeça do mundo,
mas depois esse mesmo motorista de taxi disse que vez por outra alguém aparece
pedindo para alcançar um ônibus na estrada. Era um senhor de boné velho, barba mal feita e
beiços caídos. Sem me olhar direito perguntou”: – Ele está indo pra onde? –
Para o Rio e saiu faz uns 10 minutos. “Meu plano era alcançar o ônibus, pegar o
dinheiro com a Tere e pagar o cara”. – Vamos ter que ser rápidos... Sobe
ai. “Sentei no banco de trás, e o táxi saiu cantando pneus... O cara era bom! Na medida em
que fomos acelerando, meus dedos dos pés foram se enrolando por dentro do
sapato” – Você está fugindo? – Como? Eu fugindo? Claro que não!... – Mas cadê as
malas? Você perdeu o ônibus e vai viajar sem malas?? “Expliquei o que havia
acontecido desde o início, foi quando ele me olhou e deu uma gargalhada, isso me
fez sentir um completo idiota!! Os números do taxímetro mudavam rapidamente... Os
minutos só aumentavam a minha ansiedade. Sem saber o que dizer, ele disse
antes": – A lá o ônibus... Achei!!! “Como ele podia reconhecer o ônibus pela bunda e
saber que era o meu ônibus?? Ainda perguntei: – Tem certeza? – Vou
ultrapassá-lo para que você possa ler o destino dele. “Não deu outra, era
realmente meu ônibus indo para o Rio... O motorista do táxi começou a buzinar e
colocou a mão esquerda para fora da janela acenando freneticamente. O motorista
do ônibus respondeu piscando as luzes do farol duas vezes e foi diminuindo a
velocidade. O táxi fez o mesmo. Eu, agarrado na Renata, estava assustado e me perguntava como eu havia me metido naquela situação. Nisso, dentro do ônibus,
todas já sabiam da história do ‘cara que esqueceu a certidão da filha’. Tere me
contou mais tarde, que quando o motorista do taxi apareceu buzinando, o
motorista do ônibus olhou para trás todo animado e gritou”: – Teu marido chegou... “E os
passageiros reagiram com risos e aplausos... Ai, que vergonha! Saí do taxi e a
porta do ônibus abriu. Subi com o papel da autorização do juizado numa mão e a Renata na outra. O motorista bateu em minhas costas e disse": – Mas tu ‘es muy guapo’,
tchê! ”A mãe da Renata veio correndo e abraçou a nossa filha... Só consegui fazer uma pergunta a ela:" – Porque você fez isso? "Até hoje me sinto envaidecido com a resposta.": – Você disse que iria resolver, então acreditei! – Tenho que pagar o táxi! “Ao ouvir
isso, um passageiro próximo disse": – Mas não vai mesmo, tchê, nós vamos
cuidar disso. “Pegou um jornal, enrolou em forma de cuia e foi recolher
dinheiro entre os passageiros, não teve quem não tivesse colocado algum no jornal. Voltou com a cara corada de alegria e me entregou o jornal
com o dinheiro dentro." – Agora tu podes pagar o táxi... "Meu sorriso amarelou de vez. Tere me cutucou as costelas e disse baixinho": – Aceita. Não vai fazer desfeita com a atitude deles. "Acenei e agradeci a todos. Desci para pagar o motorista e vi que havia mais
dinheiro do que o necessário para pagar a corrida, quase três vezes mais... Finalmente
pude sentar em minha poltrona. Havia um clima de fim de filme da ‘sessão da
tarde’ dentro do ônibus; todos ficaram felizes com o desfecho. As pessoas são, em
sua essência, boas criaturas, se deixarmos um fiapo de oportunidade pra fora,
elas vão naturalmente exercer o seu cuidado com o próximo. Tão logo coloquei
minha cabeça no encosto do assento e apaguei. A tensão nervosa havia consumido minhas
reservas... Acordei em Santa Catarina, na parada do ônibus para o
almoço, com a Tere me balançando o ombro”: – Vamos descer? – Vamos, estou
morrendo de fome! “Enquanto seguíamos para o balcão fazer um lanche, coloquei a
mão no bolso e lembrei que havia sobrado dinheiro da arrecadação dos passageiros
para pagar o táxi. Falei todo animado:” – Lanche que nada. Vamos para a churrascaria
dessa rodoviária... “E assim fizemos, fomos comer picanhas e linguiças, saladas
e farofas enquanto os outros passageiros foram fazer um lanche no balcão... Como sempre é
a mulher que se ‘toca’ nos detalhes. Tere me puxou a manga e disse:” – Ricardo,
estamos só nós do ônibus comendo na churrascaria, os outros passageiros estão
fazendo lanche, não vai ficar chato? Com minha característica ‘cara de pau’
sintetizei tudo com uma frase: – Relaxa Tere, certamente estão todos felizes
por estarem nos proporcionando isso... “Dessa vez deixei a consciência falando sozinha, e
fui encher a cara de carne sulista, suculenta e deliciosa; e nunca mais esqueci uma certidão de nascimento de um filho em minhas viagens."
Ricardo Cacilias
Ricardo Cacilias