Carta para Berenice

Um negro musculoso e de expressões sisudas cavalga em disparada por terrenos irregulares, golpeia, vez por outra, o lombo suado do seu cavalo. O Sol dava sinais de desistir de brilhar e vai se entregando, lentamente, aos contornos do relevo à distância. Seu nome é Chalaça e seu objetivo é chegar ao seu destino um pouco depois do anoitecer daquele dia. Era início da primavera de 1918 e nem tudo que acontecia tem o perfume das flores. O cavalo bufa e o chicote estala na mesma proporção em seu
lombo. O céu parecia uma palheta de um pintor confuso, suas cores misturavam aos tons do fim da tarde com as virgindades da noite. Ao longe Chalaça consegue ver o grande portão da fazenda Santa
Tereza, em Conservatória, aos pés da serra
fluminense. Ao chegar, apeia seu cavalo quase jogando-o para longe, corre escadaria acima da casa principal e esmorra nervosamente a porta várias
vezes; seu porte musculoso fez as batidas ecoarem como trovões num dia de verão. Os cachorros
latem nervosamente, mas nenhum deles tem coragem de se aproximar de Chalaça. Com
uma lanterna de querosene nas mãos, uma mulher muito branca e muito magra
vem atender a porta. Era Berenice, filha do senhor Durval Braga, dono da fazenda. Ao ver com
espanto o autor das batidas, Berenice diz apenas: "Chalaça!!!" A presença desse negro anunciava descaminhos... Ele
tira de dentro do seu velho chapéu de feltro, um envelope sujo e amassado, uma carta; e diz: "Sinhá, ele não passa dessa noite... Disse pra te
entregar essa carta na tua mão. Lê, por favor!" Berenice estende a mão e pega o envelope. Olha para
aquele homem forte e segura o choro ao responder: "Vai descansar. Chama Esmeralda para te por a
mesa..." Antes
de subir ao quarto, para no primeiro degrau da escada, vira-se o suficiente e diz baixinho: "Obrigada!" Na manhã seguinte, na hora da ordenha das vacas, Chalaça, Berenice e seus filhos, estão prontos para seguir para a capital, mais diretamente
para a região de Inhaúma, na capital, e todos vestem-se de negro.
O enterro
Um vento frio de fim de tarde arranca com as mãos
as folhas secas das árvores e as joga para cima, caem como confetes sobre o cortejo. Era o momento de glória dessas folhas, a euforia de estarem
livres e independentes, como se o propósito de suas vidas se resumisse no curto voo entre a árvore e ao colo do solo, recebendo-as indiferentes; depois secariam até que restasse o pó que
as consumissem... As ferraduras sobre o calçamento irregular de pedras, e
o vento forte, eram os únicos sons que se ouviam naquela rua de pouco movimento. Os
cavalos que puxam o cortejo estão cabisbaixos, não que lamentassem o destino
do seu passageiro, estão apenas cansados e com fome. Sr. Dionísio permanece calado e de olhar fixo no vazio, sabe-se lá o que vai a pensar... Sentado ao lado do condutor que traz o corpo do seu filho, vez por outra balbucia frases sem sentido. Sua nora, seus netos, parentes
e empregados aguardam sua chegada. Cipriano Leite-Roque, seu único filho,
fora velado em casa e será enterrado no cemitério de Inhaúma. Cipriano nasceu
no segundo império e morreu na jovem república. Padre Ambrósio, com sua túnica
branca desgastada e puída no ombro, segura a bíblia entre as mãos. O enterro foi preparado as pressas, assim como a lápide simples de mármore
branco e em poucas palavras, feitos da melhor maneira que o tempo permitiu. Cipriano mencionou certa vez que não desejaria flores no seu velório, se estava embriagado de vinhos ou se era brincadeira, o certo é que seu desejo estava atendido. O grupo presente era pequeno e padre Ambrósio não
precisou falar muito alto; na verdade seu tom de voz ficou
no preciso tom da despedida. Ditas as preces e os preceitos da
cerimônia, o caixão baixa a sepultura lentamente. O sino de uma capela próxima
repica cadente, impessoal, distante... Vez por outra a borda do caixão raspa nas
paredes de terra e leva sobre si, de carona, um punhado de terra. Em
menos de uma hora tudo esta terminado. Cipriano se vestiu de cova e os presentes deixam o cemitério e se espalham.
... o último dia
Poucas horas antes Cipriano mandou chamar Chalaça ao seu quarto. Estava pálido, enfraquecido, ofegante... A tuberculose havia tomado todo o pulmão esquerdo e no direito restava pouco espaço para respirar. Silenciosamente Chalaça se aproxima e se coloca ao pé da cama com a mão apoiando o rosto. Falou baixo com voz grossa: "Tô aqui patrão..." Cipriano abre os olhos com dificuldade. Tenta sorrir, mas só
consegue tossir. Sua fala é arrastada, parece embriagado: "Não me chame de patrão, negro! Tem sido por todos esses anos
mais do que um servo, um amigo, é o irmão que não tive. A tua fidelidade sempre me
acompanhou, assim como, conhece meus segredos como ninguém. Esse é nosso último encontro, mas quero te fazer um pedido desse teu irmão branco." Com a mão trêmula tira por debaixo dos lençóis o
motivo de ter mandado chamar Chalaça - uma carta a Berenice: "Leva essa carta junto ao peito, não se desvie para a
direita e nem para a esquerda. Vá como uma flecha e coloque-a nas mãos dela. Te
faço esse último pedido, meu amigo, meu irmão..." Chalaça estava confuso diante daquilo que não
poderia dominar com sua força física, diante de coisas que dizia respeito apenas às decisões de Deus. Sentia-se
pequeno, sentia-se apenas humano... Cipriano estende a mão e pede que Chalaça
ore com ele: "Faz esse oração comigo e depois faça o
que te pedi". Chalaça pega na mão
fria de Cipriano, fecha os olhos e ouve sua voz tremula dizer: "Senhor Deus! Concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as coisas que posso, e sabedoria para saber a diferença. Vivendo um dia de cada vez, desfrutando um momento por vez, aceitando as dificuldades como o caminho da paz. Tomando, como "Ele" fez, este mundo pecaminoso como ele é, não como eu gostaria que fosse. Confiando em que Ele fará todas as coisas certas se eu submeter-me a sua vontade. Que eu possa ser razoavelmente feliz nesta vida, e infinitamente feliz com Ele, para sempre, na próxima. Amém." Ao fim da prece Cipriano afundou no travesseiro, parecia sufocado, entregue. Deu seu último olhar a Chalaça, que respondeu com o mesmo olhar de despedida e partiu... Horas mais tarde o senhor Dionísio manda chamar às pressas o médico. Cipriano não voltaria a ficar lúcido novamente e morreria no início da noite com seu pai chorando debruçado sobre seu corpo. Dez de agosto de 1918, com apenas 28 anos, Cipriano morreu... Morreu numa noite de lua azul.
... a
carta

"Berenice,
minha muito estimada esposa e senhora de minha vida. No momento em que
escrevo essa carta ainda somos marido e mulher, mas já não seremos no momento
da sua leitura. Você foi o verdadeiro sentido dessa minha vida que está por
terminar. Pareço louco em dizer, mas esse longo e torturante processo de
separação, o maior desastre da minha vida, tem sido a luz do sol do meio-dia a remover sombras e vultos dos meus pensamentos. Consigo te ver hoje,
distante do teu convívio, através de lentes
novas, lavadas em água cristalina, em cores vivas e brilhantes.
Envergonho-me em dizer, mas escrevo chorando, as lágrimas gotejam como uma torneira que pinga. Choro por ter te recebido de Deus ao meu convívio,
mas que não soube florescer e preservar esta fortuna, pois, descuidado, derramei álcool em minha vida e tentei secar com o calor das chamas.
Foi
preciso a luz da separação rasgar de ódio as trevas do meu entendimento,
para me fazer enxergar a sutileza e a beleza da nossa relação e das coisas que
me fizeram apaixonar-me por você. Essa luz, tecida de dor na agulha do vazio, acorda
comigo e não me abonadona nem em sonhos. Levou algum tempo para que meus olhos
não se ofuscassem tanto, pois quem vive por muito tempo nas sombras, enxerga na luz
um inimigo, até que os olhos, ao se acostumarem com a sua presença, percebam
que eles também são feitos de luz. Passei a me enxergar com tanta clareza que
me deu medo; é mais confortável conviver com a versão do que com os fatos. Hoje entendo que ser homem é ser o guardião do crescimento da mulher, ser homem
é ser a testemunha da sua graça, é estar presente diante da sua vida, das coisas
que sente e em que acredita. Agora sei que o
maior dos prazeres não é o que sai de mim, mas o que eu enxergo em teu rosto!
Te amei quando te vi pela primeira vez e já te amava antes de ter te conhecido.
Te amava no ventre de tua mãe, pois os contornos do teu coração já eram alvos
do meu desejo desde a concepção da minha existência. Eu te amo Berenice! Estou sóbrio da alma e de corpo, ainda
que as febres da saudade me consumam até as pontas dos menores pelos de meu
corpo, ainda que meus músculos se contraiam e me entortem fazendo do meu corpo
a imagem da mais densa saudade e do abandono. Estou doente e vou morrer! Peço-te que me perdoe! Quem fala não é o Cipriano da juventude, mas o que sempre
existiu encoberto pela avareza da rebeldia, vestido das cascas da mediocridade,
da melancolia cantada por minha ignorância. Queria estar com você agora, queria
ter vivido o tempo da secura de nossas peles, enquanto a nossa união faria de nossas almas, crianças felizes. Queria ter podido marcar com lápis, atrás da porta do nosso quarto, o crescimento dos nossos filhos; faz isso por mim. Berenice, o perdão é como adubo
no coração e dele faz surgir vida e vida em abundância. Te amo, minha muito amada
mulher e esposa. Cuida dos nossos filhos. Cuide de você e se permita casar de
novo. Encontre a felicidade que não te causei. Teu.
Cipriano
Leite-Roque."
Essa carta causou um grande efeito na vida de Berenice e de seus
filhos. Ela voltou a se casar novamente, 8 anos depois da morte de Cipriano. Sua filha, Ana Alice
Leite-Roque Avellar, cresceu e se tornou uma linda mulher. Foi uma ativista dos
direitos civis das mulheres; ainda muito jovem participou ativamente
dos movimentos do Sufrágio Feminino de 1934 e 1936. Formou-se em Assistência
Social e por defender posições contrárias ao governo militar, viveu 2 anos exilada
no Chile. Seu filho mais velho foi um dos "desaparecidos". Morreu em 2002
aos 88 anos cercadas de 4 filhos, 8 netos e dois bisnetos. Seu irmão Lucas Leite-Roque foi um magistrado respeitado, professor, pesquisador e escritor. Participou como jovem deputado da constituinte de 1946 pós a era Vargas. Morreu aos 78 anos, cercado
de filhos e netos. Berenice morreu em 1972, já viúva pela
segunda vez. Deixou por escrito que desejaria ser enterrada no
jazigo da família Leite-Roque ao lado do corpo de Cipriano. Naquele dia distante, no enterro
de Cipriano, Berenice jogou o envelope com a carta para ser enterrada junto ao
marido. Foi seu jeito de dizer a Cipriano que estava perdoado. Não se conhecem os motivos da separação. Não teve filhos
no segundo casamento.
... final
O que sei dessa história, eu contei, mas tenho uma revelação a fazer. Noventa e quatro anos depois da morte de Cipriano fui contratado por uma empresa mobiliária, com sede Administrativa no bairro de Inhaúma, no subúrbio do Rio de Janeiro. Pouco ao redor lembra o mundo de 1918, ano do término da primeira guerra e da morte de Cipriano. Fui da minha casa, em Botafogo, a Inhaúma, de metrô, levar a documentação da minha contratação. Caminhando pela Avenida Pastor Martin Luther King Júnior, um pedaço de mármore branco, meio enterrado no chão, chamou minha atenção.Era o fragmento de uma lápide onde era possível ler:
JAZ - EITE ROQUE - 890 - 1918 - S ETERNAS - U PAE - E FILHOS.
Fiquei chocado em ver uma lápide de um jovem morto em 1918, aos 28 anos, diante de mim, quebrada ao meio, suja, servindo de tapa buraco no meio da rua. Não precisei fazer força para imaginar a dor e o sofrimento do "Pae" e dos "Filhos" enterrando há 94 anos o "EITE ROQUE". Jamais imaginariam que a lápide do seu querido um dia estaria no meio da rua. Aquela cena me perseguiu durante o dia e pedacinhos de ideias foram se juntando ao redor dos meus devaneios, densificando, cristalizando, o que acabaria virando essa história.
Tudo
que escrevi é um simples romance, nomes, texto, imagens; nasceram de mim como fetos que desejam o ar que respiram... A única verdade é a foto da
lápide quebrada de alguém chamado "EITE ROQUE", meio enterrada e
perdida na calçada de um bairro do Rio chamado Inhaúma.
Que
Deus o tenha.
Ricardo
Cacilias
30-09-2012