Hoje foi o dia de finados. Estava escalado para trabalhar neste feriado. Não me importei...muito... Eu nunca fiz desta data um dia especial para ir ao cemitério visitar os "mortos" da família. Para mim sempre foi um dia de feriado. Acho que é uma tradição mais católica. Todos os dias amanheço com meu pacote de pensamentos vazio, murcho...dobrado debaixo do braço e saio para o trabalho. O dia passa e vou enchendo meu pacote com pensamentos de tudo que é tipo, cor e formato; mas não há um dia que não tenha neste pacote, pensamentos de uma ou de outra pessoa que fizeram parte da minha vida e seguiram para o outro lado. Eu tinha 16 anos
quando vi um filme muito interessante com um ator que acho fantástico. O filme se chamava Man Friday com Peter O’Toole. É um filme baseado na história de Robson Crusoé. O personagem de Sexta-feira era o ator Richard Roundtree. O filme é repleto de mensagens, um constante confronto da pureza e da humanidade de Sexta-feira, que procura desconstruir conceitos da prepotência branca européia de Robson e sua maneira pesada de viver. O filme vai se desenrolando, mas tem um momento que para mim foi muito marcante, tanto é que já se passaram 36 anos e assim que comecei a escrever este texto, imediatamente me lembrei da cena. Sexta-feira está sozinho na praia, agachado, apoiado nas pernas dobradas, braços esticados, largados, seu olhar sem expressão olha em direção ao fogo que queima alguns gravetos... Robson vai se aproximando lentamente e fica espantado com a visão de Sexta naquela contemplação ao fogo e pergunta: "O que está fazendo? Aconteceu alguma coisa??" Sem tirar os olhos das chamas, Sexta responde pausadamente: "Para o meu povo, hoje é o Dia da Lembrança. Passamos o dia lembrando dos nossos mortos, é um dia triste e de reverencia..." Robson responde num tom de quase desprezo: "Mas isso é ridículo, um dia inteiro lembrando gente morta!!!" Sexta-feira não se abala, ao contrário, o convida a se unir a ele junto da fogueira para fazer o mesmo. Curiosamente Robson não responde, mas vai se agachando lentamente e fica ao lado de Sexta na mesma posição. Em poucos instantes seu olhar vai ficando distante, vago, sem expressão e inesperadamente cai em pranto. Sexta-feira em silêncio coloca a mão sobre seu ombro e a cena acaba. Porra, fico arrepiado só de lembrar do grande Peter O’Toole nesta cena. Não deveria se chamar dia dos finados, sugiro ao Brasil trocar o nome para dia da LEMBRANÇA. Um dia para lembrar como algumas pessoas foram importantes na modelagem do barro e da palha, que ajudaram a edificar o nosso caráter, a nossa maneira de pensar e de interpretar o mundo. Eu penso que nós somos uma compota de vidas, somos um extrato de frases, de exemplos, nós somos a flor adubada por nossos antecessores. Coisas que nem lembramos a origem, nasceu como ferro forjado em alta temperatura até atingir a nobreza do aço. E desse aço é que projetamos a base da geração seguinte. Às vezes estou diante dessa fogueira, agachado em contemplação, sorrindo, chorando, vibrando ao lembrar dos fantasmas da minha formação. Para fechar meu raciocínio gostaria de contar uma coisinha, um farelo de lembrança do meu pai que faz parte da engenharia genética de muitas atitudes que tenho hoje. Num dia qualquer de 1977 eu morava na Tijuca, aqui no Rio. Eu tinha 18 anos. Fui até a Mesbla, que não existe mais, comprar um ferro de soldar. Entrei na loja, fui atendido pelo vendedor, escolhi o ferro e fui para casa... Assim que cheguei em casa fui direto ligar o ferro de soldar, pois queria soldar uns fios numa caixa de som. Na hora que liguei o ferro na tomada, uma fumacinha branca saiu de dentro dele... O ferro já era!! Eu fiquei decepcionado... Em 1977 não havia a lei do consumidor. Dei como perdido o dinheiro que gastei na compra. Meu pai, passando pela porta do meu quarto, meu viu com aquela cara de bunda e perguntou: O que foi? Eu respondi: Acabei de comprar esse ferro de soldar e queimou, sei lá...não está funcionando... Meu pai disse num estalo: Pega a nota de compra, vamos lá trocar... Eu disse na hora: Não vão trocar pai... Já era!!! Ele repetiu a mesma frase: Pega a nota de compra, vamos lá trocar... Eu pensei: Essa eu quero ver!!! E fomos para a Mesbla. Quando chegamos no setor de ferramentas, meu pai me perguntou: Quem te atendeu? Apontei com um gesto dos olhos: Foi aquele baixinho ali... Meu pai pegou a nota e o ferro e se aproximou do vendedor. Oi. Meu filho comprou esse ferro de soldar aqui com você há uma hora atrás e esse ferro queimou assim que ele colocou na tomada. Quero trocar por outro... O vendedor disse: Desculpe-me senhor, mas não trocamos esse produto. Meu olhar desabou em direção ao meu pai; numa fração de segundos olhei seus olhos, sua postura, queria saber o que ele iria fazer, o que iria dizer, qual seria o estalo diferencial, a atitude que mudaria aquele impasse. Eu sabia que aquele falso momento trivial iria se transformar em algo para se lembrar: um momento, entre outros diversos, que foram impressos em minhas lembranças... Meu pai, sem mudar o tom da majestade que os anos de vida coroam a maturidade de uma pessoa, disse ao vendedor: Eu não perguntei se vocês trocam esse produto ou não, eu disse que vim trocá-lo! A afirmação inesperada fez a boca do vendedor fazer um biquinho... Mesmo estando em meados dos anos 70, havia alguém do futuro exigindo seus direitos. O vendedor não falou mais nada, pegou o ferro de soldar das mãos do meu pai, pegou outro novo e entregou a ele. Meu pai agradeceu, colocou em minhas mãos o ferro de soldar e saímos em silêncio... Waalll!!! Esse ferro com o passar dos anos acabou queimando de novo, mas ainda o conservo guardado na minha caixa de ferramentas como um símbolo a me lembrar de que uma atitude firme e justa pode mudar o destino das coisas.
Bom dia da LEMBRANÇA.
Ricardo