Baseado em fatos reais

1. Peço a quem esteja ao meu lado, quando eu morrer, que telefone primeiro para a minha irmã, o telefone está na agenda. Diga para ela avisar a família, mas quanto ao meu irmão, que ela avise pessoalmente, ele é meio emotivo nessa hora e pouco prático, sou capaz de apodrecer aos seus pés enquanto chora. Depois ela deverá avisar a minha tia. Ela é espírita de carteirinha e pelo que conheço, certamente na primeira reunião que frequentar, irá querer puxar assunto comigo, perguntar como vão as coisas e me dar instruções de como agir na espiritualidade; é bem o jeito dela... Por favor, diga a ela que não faça isso, estarei de péssimo humor por ter morrido. Partirei com o sentimento de ter deixado quase tudo pela metade, partirei com minhas dívidas emocionais, da forma que vim ao mundo, nada trouxe e nada levarei; apenas vestido de saudade. Dos medíocres lembro de uma de suas frases preferidas: “Não me arrependo de nada que fiz na vida.” Não posso dizer o mesmo. Acho que poderia ter sido um pai melhor do que fui, um filho melhor do que fui, um marido melhor, mas acho também que hoje, aos 55 anos, estou assistindo o mundo de uma forma diferente. Não é só os vinhos que se beneficiam com o tempo, mas infelizmente o tempo não pode ser rebobinado.
2. Sobre as centenas de fotos que tenho guardado no computador, façam o que quiserem delas. Que autoridade um corpo sem alma tem sobre os seus pertences? Qual das suas gavetas mais secreta permanecerá indevassada, arranhada com os olhos dos visitantes. Peço apenas que as fotos em que apareço com as mulheres que foram importantes na minha vida, que a elas sejam ofertadas e que decidam se jogarão fora ou colocarão numa moldura.
3. Quanto ao meu corpo, não me importa que destino seja dado. Desejo que sejam doados todos os órgãos, pele, córneas... não tenho apego a nenhum deles. Lamento apenas que não poderei senti-los, já costurados em outro corpo, pois adoraria continuar sentindo o cheiro do mar, o sabor dos alimentos, assistir a vitória de um por do Sol, sentir o aperto de um doce abraço. Se me dessem o capricho da escolha, eu gostaria de ser enterrado ao lado da minha mãe. Não que haja calor nos ossos ou mesmo a possibilidade de um abraço, mas me conforta pensar que dela saí e a ela retornei. Muitas vezes só minha mãe conseguia ter um segundo a mais de paciência comigo. Aquela italiana arretada não era de ficar batendo palmas para mim, mas quando as peças não se encaixavam e meus brinquedos estavam espalhados fora da caixa, quase sempre ela me ajudava a guardá-los, ainda que essa ajuda viesse na forma de um olhar.
4. O que tiver de dinheiro no banco, que seja dividido igualmente entre meus filhos; assim poderão comprar uma roupa, pagar um almoço, uma prestação qualquer. Me fará sentir ter feito um último gesto de pai.
5. Não quero que coloquem anúncio no jornal, acho isso ridículo, gaiato de mais para o meu gosto. Deixe que aqueles que me procurarem, saibam, cada um ao seu tempo, o que aconteceu comigo. Haverá aqueles que saberão logo, alguns levarão mais tempo, mas a maioria dos meus conhecidos, vez por outra, ao longo de suas vidas dirão: "Ricardo tá sumido, nunca mais apareceu..."
6. O caixão deverá ser do tipo básico, o mais barato da loja, sem madeira de lei, sem bronze polido adornando as extremidades, sem entalhes de madeira, sem crucifixo, sem acolchoados revestidos de cetim, sem a bandeira do Fluminense cobrindo a tampa, sem verniz e que em hipótese alguma haja flores. Isso tudo me soa muito irônico, enfeitar o lugar em que vou apodrecer... Na verdade não serei eu ali deitado, porque o que faz sermos o que somos está guardado na alma, ela é que nos faz movimentar como marionetes com seus fios da vida. Prefiro ser lembrado como vivi: as vezes denso, as vezes criativo, um romântico bobo, por vezes sacana, emotivo, um pouco inconveniente e apaixonado. Paguei caro por viver assim. Quanto ao enterro, que seja rápido, por favor. Não me deixem exposto por muito tempo, isso é cansativo até para quem já está morto.
7. Sobre o meu corpo nada de terno, nada que fique me apertando o pescoço. Uma camiseta nova da Hering de fio trançado na cor branca, beeem largona, me deixará muito satisfeito. Outra coisa, no meu armário tem alguns jeans desbotados, são os mais confortáveis, me vistam com o mais "fuleira", sem cueca e sem cinto. Nos pés apenas meias brancas, não vou andar por ai mesmo... Quanto as roupas que sobrarem, deem para qualquer um, não me importa.
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