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terça-feira, 22 de abril de 2014

INSTRUÇÕES PÓSTUMAS

Baseado em fatos reais






Ontem a noite tive pesadelos. Eram imagens indefinidas que se moviam lentamente, misturadas com neblinas e um profundo silêncio. Hora eu dormia, hora estava acordado olhando as cortinas do quarto balançarem no ritmo de uma brisa bêbada. Parecia não ter fim. Numa das vezes que acordei lembrei dos meus pais; não foi bem deles, senti saudade da família que fomos, do aconchego, daquele cheiro de casa que só a nossa casa tem. Também pensei nos meus filhos, lembrei que nem sempre as promessas são tão fáceis de serem cumpridas, quanto são fáceis de serem ditas. Acabei pensando na minha vida e por fim na minha morte. Meu Deus... É a melhor forma de dominarmos o Ego, a vaidade, o orgulho, a soberba; lembrar que a vida é uma viagem de canoa sem remos, com uma grande queda d'água a frente. Meus olhos viravam de um lado para outro no escuro do quarto. Cheguei a gracejar com isso, imaginando como seria o meu epitáfio... Acordei com vontade de anotar os 10 pensamentos que tive sobre como deveriam agir comigo depois da minha morte:

1. Peço a quem esteja ao meu lado, quando eu morrer, que telefone primeiro para a minha irmã, o telefone está na agenda. Diga para ela avisar a família, mas quanto ao meu irmão, que ela avise pessoalmente, ele é meio emotivo nessa hora e pouco prático, sou capaz de apodrecer aos seus pés enquanto chora. Depois ela deverá avisar a minha tia. Ela é espírita de carteirinha e pelo que conheço, certamente na primeira reunião que frequentar, irá querer puxar assunto comigo, perguntar como vão as coisas e me dar instruções de como agir na espiritualidade; é bem o jeito dela... Por favor, diga a ela que não faça isso, estarei de péssimo humor por ter morrido. Partirei com o sentimento de ter deixado quase tudo pela metade, partirei com minhas dívidas emocionais, da forma que vim ao mundo, nada trouxe e nada levarei; apenas vestido de saudade. Dos medíocres lembro de uma de suas frases preferidas: “Não me arrependo de nada que fiz na vida.” Não posso dizer o mesmo. Acho que poderia ter sido um pai melhor do que fui, um filho melhor do que fui, um marido melhor, mas acho também que hoje, aos 55 anos, estou assistindo o mundo de uma forma diferente. Não é só os vinhos que se beneficiam com o tempo, mas infelizmente o tempo não pode ser rebobinado.

2. Sobre as centenas de fotos que tenho guardado no computador, façam o que quiserem delas. Que autoridade um corpo sem alma tem sobre os seus pertences? Qual das suas gavetas mais secreta permanecerá indevassada, arranhada com os olhos dos visitantes. Peço apenas que as fotos em que apareço com as mulheres que foram importantes na minha vida, que a elas sejam ofertadas e que decidam se jogarão fora ou colocarão numa moldura.


3. Quanto ao meu corpo, não me importa que destino seja dado. Desejo que sejam doados todos os órgãos, pele, córneas... não tenho apego a nenhum deles. Lamento apenas que não poderei senti-los, já costurados em outro corpo, pois adoraria continuar sentindo o cheiro do mar, o sabor dos alimentos, assistir a vitória de um por do Sol, sentir o aperto de um doce abraço. Se me dessem o capricho da escolha, eu gostaria de ser enterrado ao lado da minha mãe. Não que haja calor nos ossos ou mesmo a possibilidade de um abraço, mas me conforta pensar que dela saí e a ela retornei. Muitas vezes só minha mãe conseguia ter um segundo a mais de paciência comigo. Aquela italiana arretada não era de ficar batendo palmas para mim, mas quando as peças não se encaixavam e meus brinquedos estavam espalhados fora da caixa, quase sempre ela me ajudava a guardá-los, ainda que essa ajuda viesse na forma de um olhar.

4. O que tiver de dinheiro no banco, que seja dividido igualmente entre meus filhos; assim poderão comprar uma roupa, pagar um almoço, uma prestação qualquer. Me fará sentir ter feito um último gesto de pai.

5. Não quero que coloquem anúncio no jornal, acho isso ridículo, gaiato de mais para o meu gosto. Deixe que aqueles que me procurarem, saibam, cada um ao seu tempo, o que aconteceu comigo. Haverá aqueles que saberão logo, alguns levarão mais tempo, mas a maioria dos meus conhecidos, vez por outra, ao longo de suas vidas dirão: "Ricardo tá sumido, nunca mais apareceu..."
  
6. O caixão deverá ser do tipo básico, o mais barato da loja, sem madeira de lei, sem bronze polido adornando as extremidades, sem entalhes de madeira, sem crucifixo, sem acolchoados revestidos de cetim, sem a bandeira do Fluminense cobrindo a tampa, sem verniz e que em hipótese alguma haja flores. Isso tudo me soa muito irônico, enfeitar o lugar em que vou apodrecer... Na verdade não serei eu ali deitado, porque o que faz sermos o que somos está guardado na alma, ela é que nos faz movimentar como marionetes com seus fios da vida. Prefiro ser lembrado como vivi: as vezes denso, as vezes criativo, um romântico bobo, por vezes sacana, emotivo, um pouco inconveniente e apaixonado. Paguei caro por viver assim. Quanto ao enterro, que seja rápido, por favor. Não me deixem exposto por muito tempo, isso é cansativo até para quem já está morto.


7. Sobre o meu corpo nada de terno, nada que fique me apertando o pescoço. Uma camiseta nova da Hering de fio trançado na cor branca, beeem largona, me deixará muito satisfeito. Outra coisa, no meu armário tem alguns jeans desbotados, são os mais confortáveis, me vistam com o mais "fuleira", sem cueca e sem cinto. Nos pés apenas meias brancas, não vou andar por ai mesmo... Quanto as roupas que sobrarem, deem para qualquer um, não me importa.

8. O que posso dizer sobre o que virá quando eu abrir meus olhos do outro lado? Quem sabe se meus pais estarão me esperando? Quem sabe se realmente existe um céu e um inferno e em qual desses clubes, cuja a roleta só gira para dentro, serei aceito? Existem muitas verdades que nos são descritas, seus dogmas, seus cultos, suas regras; há muitas formas de se interpretar os desígnios de Deus. Acima de tudo eu sou um cristão convicto, mas gostaria de confessar uma esperança íntima e pessoal, que tem me confortado em momentos de angústia, de dúvidas e tristezas: O Deus em que acredito disse que haverá um julgamento e eu me submeterei a ele com alegria, pois será justo e definitivo. No século 1 da nossa era, por volta do ano 56, um cidadão romano de nome Saulo, de origem judaica, que passou a se chamar Paulo depois da conversão a fé cristã, escreveu quatro epístolas para a igreja grega da cidade de Corintios, fundada por ele tempos antes. Dessas quatro epístolas, duas estão perdidas, mas a segunda, a qual quero mencionar, tem as palavras que me confortam: "Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba, segunda o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal." Será o único julgamento que realmente me importa. A todos os outros que me submeteram gratuitamente de forma insistente e arbitrária, ora, que se danem!

9. Tenho medo do que vou sentir falta quando estiver no invisível. Falta de beijo de mulher, do sorriso de um filho, do abraço de um amigo, de ver o dia se dissolver entre as estrelas do anoitecer. Tenho medo dos arrepios dos arrependimentos; de não ter aprendido a tocar um instrumento, de não ter terminado de pintar aquela tela, de não ter dado o ponto final no meu livro... Gostaria de finalizar dizendo que se Deus me propusesse uma segunda chance de viver novamente, ainda sim eu faria um suplicante pedido: Que eu voltasse com esse mesmo velho coração fundido a fogo e ferro pela vida que tive. Com esse coração assim tão cheio de cicatrizes, de avisos escritos em suas paredes sobre as coisas que fiz e foram um desastre, e de outras tantas que fiz e me encheram de muitas alegrias. Com esse coração eu saberia fazer coisas incríveis, que me custaram tanto para aprender. Desviaria-me de conhecidas trilhas que me levaram a becos estreitos e sem luz. Deixaria de abrir dúzias de portas rangentes e ficaria ansioso por abrir outras tantas, que hoje as reconheço como sendo imperdíveis. Eu teria mais cuidado em não amassar os corações que me chegassem ao convívio, antes, porém, saberia acariciá-los com tal zelo, devolvendo-os ao peito de seus donos deliciosamente massageados. Ficaria mais atento a momentos que de tão tão especiais, só acontecem uma vez na vida, e por vezes desperdiçamos esses milagres por estarmos olhando na direção oposta. Sentaria mais vezes no chão para brincar com meus filhos e seria abençoado por eles através dos seus sorrisos de anjos barrocos. Saberia ser cúmplice da mulher amada, amigo, protetor e faria uma parceria de vida para chegarmos juntos em todas as corridas. Saberia fazer amor de um jeito diferente de tudo que já tivesse feito antes, veria meus lençóis como nuvens e me renderia a paz que o verdadeiro amor produz; sem limites, sem regras, sem censuras, sem desencontros, onde tudo acabaria na explosão iluminada de um prolongado orgasmo. Investiria mais em ouvir, em julgar menos, ser mais agradecido, aprenderia a dar uma segunda chance, esquecer as mágoas; buscaria desapegar-me da cegueira da vaidade desperfumada e deixaria mais e mais a vida fazer de mim uma morada divertida. Quem vive dessa maneira, não vê a morte como um fim, mas como uma consagração.

10. Chega, já falei demais...

 
ps.: Esqueci de dizer o epitáfio.




22/04/2014   
a um mês do meu aniversário

  



  




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