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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

UMA HISTÓRIA DE MENINO


Baseado em fatos reais




Quando eu nasci meu pai tinha 30 anos. Ele sempre foi muito reservado, não era dado a "espumas", não espalhava seus "confetes" e não apreciava a exposição; os portões da sua intimidade sempre foram pesados e de pouco acesso...
        Lembro de uma  história que ele me contou no verão de 1967, e que sempre me ajudou a entender um pouco esse homem que, de uma única célula de seu corpo me fez existir e de mim vieram meus quatro filhos e depois outros quatro netos... Era manhã de domingo e morávamos no quarto andar de um prédio antigo no Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro. Ele havia me dado, na noite anterior, uma caixa de bombons, mas eu estava chateado porque minha mãe havia "confiscado" a minha caixa e me dera apenas um bombom. Ela me disse que de vez em quando eu poderia ganhar outro; desde que eu fizesse por merecer, fosse obediente e não brigasse com meus irmãos... E guardou a caixa de bombons em local incerto e não conhecido. Aff... Coisas de mãe.


Eu estava deitado em minha cama, terminando de mastigar compenetrado meu bombom, enquanto que a folha de alumínio em minhas mãos refletia a luz de uma janela próxima, em meu rosto... Meu pai passou pelo corredor, parou em frente à porta do meu quarto e perguntou: "Estava bom?" Devolvi um olhar enfadonho e disse: "Quero mais..." Meu pai apenas respondeu: "Isso é com sua mãe, não vou me meter nisso." Voltei meus olhos para o papel de alumínio amassado, pensando em lamber a mancha de chocolate que estava nela. Meu pai deve ter ficado com pena de mim, entrou no quarto e sentou-se na beirada da cama. De súbito seu rosto foi se pondo como um Sol de fim de tarde, e com ares de quem se lembra de alguma coisa, disse: "É melhor ter um bombom de vez em quando do que perder todos de uma só vez..." Olhei para ele sem entender porque tinha dito isso, e ainda olhando para o mesmo ponto distante, muito além do meu quarto, ele continuou: "Eu tinha a sua idade quando uma vez seu avô foi me visitar no colégio interno em que eu estudava e me trouxe uma caixa de bombons." Tempos depois fui saber que isso aconteceu em 1936 e nessa época meu pai também tinha 8 anos. Ele estudava num colégio interno onde permanecia o mês inteiro e saía apenas dois fins de semana para ir em casa. Minha avó havia morrido em 1930 e com apenas 2 anos meu pai perdeu sua mãe; eu nunca conheci a minha avó e ele nunca teve muita coisa para me contar sobre ela... O que mais me incomoda nessa conversa que tivemos é que minhas lembranças estão fragmentadas, e infelizmente não tenho mais a quem perguntar os detalhes, porque todos os envolvidos já se foram; então, ao longo dos anos eu fui preenchendo em minha mente as lacunas esfumaçadas dessa conversa... Até onde me lembro da história, à visita do meu avô, naquele domingo, teve um momento diferente e marcante: ele levou uma caixa de bombons para meu pai. Era uma caixa de bombons diferentes de hoje em dia, a caixa era de madeira da marca Moinho de Ouro e provavelmente fora comprado na Av. Rio Branco, no centro de um Rio de Janeiro dos anos 30... Naquela época não era comum dar bombons para crianças, por isso esse presente foi tão especial, ainda mais por ter sido dado pelo seu pai. Consigo imaginar quantas saudades, quantos vazios, quantas "faltas" rechearam o coração desse menino; longe de casa e longe do amor de uma mãe. De certo aqueles dias refletiram nos alicerces da sua vida. Os outros meninos que estavam no pátio viram ele receber a tal caixa de bombons e quando o horário de visita dos internos terminou, e meu avô foi embora, sua maior preocupação era proteger seus bombons, já que os armários eram sem chave e os quartos eram coletivos... Nesse ponto da história meu pai já tinha toda a minha atenção, eu estava virado para ele, sentado sobre o colchão da cama com as pernas cruzadas e meu queixo apoiado sobre minhas mãos. Minha imaginação de criança ia criando as imagens de tudo que ele me contava, e ao mesmo tempo pensava no que eu faria se estivesse no lugar dele. Eu era um menino "bobinho" cercado de todos os cuidados de uma mãe e de um pai muito presentes, ainda não tinha o jogo de cintura que a vida foi me esculpindo na alma e nem a perspicácia de um menino que crescia sem mãe, morando num colégio interno e longe de todos os cheiros que nos fazem sentir em casa. Ele disse que enquanto subia a escadaria de madeira, que o levaria até o seu alojamento, teve uma ideia. Passou correndo na cozinha do refeitório e conseguiu alguns barbantes que se usava na época para amarrar o pacote do pão; eram fios de algodão fino e comprido. Ao chegar em seu quarto ele arrebentou com as mãos diversos pedaços de barbante e entrou para debaixo da sua cama com os barbantes e a caixa de bombons. Debaixo da cama ele foi amarrando cada bombom a um fio de barbante e depois foi prendendo, um por um, nas molas do estrado do colchão; quando terminou sua tarefa, seus bombons balançavam alegremente como se estivessem felizes e surpresos por tão inusitado destino. Sentindo-se seguro e satisfeito com seu plano, meu pai saiu de debaixo da cama e se certificou que ninguém havia visto nada do que fizera. Meus olhos estavam sobre meu pai, mas o meu entendimento estava nas imagens que eu assistia durante o seu relato; eu imagino meu pai menininho, deitado debaixo da cama, polindo o chão com as costas da camisa, amarrando os bombons nos fios de barbante de pão, com seus dedinhos movendo-se apressadamente, acompanhado apenas por um coração palpitante e um par de olhos serenos do seu anjo guardião. Naquela noite ele foi para a cama satisfeito, ainda que por causa da pressa, não tenha comida nenhum bombom, era seu tesouro particular; o único menino daquela instituição que tinha bombons escondidos em local incerto e não conhecido... Na manhã seguinte, nos primeiros lampejos de luz e antes que qualquer um tivesse acordado, meu pai escorreu por entre lençóis para debaixo da cama para comer seu primeiro bombom... e para sua mais absoluta surpresa, todos os bombons haviam desaparecido! Não havia nada além de barbantes amarrados à papéis destroçados. Um cemitério sem almas... Fiquei de olhos arregalados e de boca aberta ao ouvir tal desastre, sentia como se eu estivesse ali com ele debaixo da cama, atônito, sem respostas,  desamparado, longe de casa e cercado de estranhos. Eu nem piscava, apenas acompanhava o movimento dos olhos do meu pai enquanto relembrava aquele momento... Não sei se meu pai chorou, não sei se xingou, não lembro o que ele me contou ter feito em seguida. Que pena! Talvez tenha sido o efeito que essa estória produziu em mim, mas até hoje sinto uma sensação forte de ter visto nos olhos do meu pai, entre um piscar e outro, o mesmo olhar de tristeza e frustração que aquele menino de oito anos sentiu. Por um instante fomos dois meninos deitados debaixo da cama, abafando o choro, sem ter para quem pedir amor e colo; ele nunca soube, mas eu estava ali com ele em espírito... Meses se passaram até que um dia, após o almoço e no pátio da escola, um menininho como ele, também longe de casa e vivendo entre estranhos, se aproximou de meu pai e disse que queria lhe contar uma coisa: “Gelson, eu vi quando você ganhou os bombons do seu pai naquele dia... Esperei que todos fossem dormir e fui procurá-los em seu armário... Estava muito escuro, eu não conseguia ver quase nada e revirava tudo sem fazer barulho. Até que você se mexeu, enquanto dormia, e me assustei, fiquei com medo de ser visto, me escondi debaixo da sua cama e bati com meu rosto nos bombons. Fiquei ali até comer o último...” Meu pai não brigou, não disse nada... O que poderia dizer? Apenas se afastou, talvez com uma certa paz de ter descoberto o que havia acontecido, talvez com alguma compreensão de saber o que aquele menino também sentia por viver ali..., mas tudo aquilo não deixou de ser uma lição para a vida. Até onde me lembro à história termina aqui! Às vezes acreditamos ter as coisas sob controle e achamos ter amarrado muito bem nossos valores no lugar mais seguro do mundo e bem debaixo do nosso nariz... Às vezes bastam apenas algumas horas de uma noite qualquer e acordamos despidos desses valores sem encontrar uma explicação lógica para tantas perdas. Eu tiro disso uma lição, que nada na vida é uma certeza absoluta que não mereça constante cuidado e atenção. As vezes ficamos tão concentrados nos "barbantes" e nos esquecemos da qualidade dos nós que estamos lhes dando. Meu pai morreu em 1989 e de vez em quando me lembro dele e às vezes dos bombons que roubaram da gente; e por mais que eu tenha revirado por semanas a minha casa, eu nunca achei o lugar em que minha mãe escondeu a caixa dos meus bombons..., mas eu comi todos eles.




30-12-2011





Singela homenagem ao melhor cara que o
infinito abrigou em toda a sua extensão desde 
aqui até a mais distante estrela do Universo:
Meu Pai!