Baseado numa história real
Em três dias** faço 53 anos.
Já esperei com
alegria por esse dia, hoje não mais...
É estranho me olhar no espelho pela manhã e assistir um rosto que não me representa. O tempo é como as ferrugens nas estruturas de ferro do cais, nos faz derreter, nos desmonta aos pouquinhos. No meu quinquagésimo terceiro aniversário, minha casa é um quarto numa rua pouco iluminada de Botafogo e meu casamento está guardado numa caixa de papelão num punhado de fotos desordenadas. Minha alegria é tão real como uma nota de três reais, mas sou sincero nesta mentira, chego a me convencer de que não sou tão triste assim...
Não é a primeira vez que a minha casa é um quarto na casa de alguém. Há 25 anos, em maio de 1987, recém-separado, estava na faculdade cursando desenho industrial e precisava de um lugar para ficar. Alguém conhecia alguém que conhecia o João B.; logo apareceu o telefone dele, eu liguei e marcamos para conversar. Na tarde do dia seguinte saio do elevador com um endereço rabiscado as mãos, acompanhando os números em cima das portas, até chegar no 502. Coloquei-me a frente no que me pareceu ser a porta da sala, arrumei o cabelo diante de um espelho imaginário e apertei o botão da campainha. Um som de campainha velha e abafada soou lá por dentro. Escutei o barulho da tranca em movimento, só que na porta ao lado. Virei-me apressado e cheguei junto, não queria parecer um idiota diante da porta errada. Cheguei a pensar: "...mas quem recebe alguém pela porta da cozinha?" Um senhor gorducho, com um olhar indefinido e cabelos ralos me encarou apertando os olhos, esperei alguns segundos achando que ele iria dizer alguma coisa, mas diante do seu embaraçoso silencio eu disse "Oi". O sujeito não respondeu, mandou-me entrar com um movimento da cabeça em direção a porta... Em pé, no meio da cozinha, ele se apresentou formalmente: "Boa tarde, meu nome é João B. Você deve ser o Ricardo "do quarto". Posso te oferecer alguma coisa? Aceita um pouco de água?" Ele tinha um tom formal e elegante, parecia um diplomata... Seus cabelos ralos estavam penteados para trás, fixados com algum tipo de "gomex", suas bochechas eram fartas e coradas. Deu para ver que estava de pijama: "...as três horas da tarde?" pensei. Eu aceitei a sua água, mas para minha surpresa ele pegou um copo com cara de pote de requeijão, que estava virado de boca sobre um prato em cima da geladeira; sem brilho, vulgar, cheio de marcas de dedos, opaco, empoeirado, com cara de sujo mesmo e com uma pequena trinca na borda. Tive a sensação de que ele havia oferecido aquele copo para qualquer um que chegou a sua porta nos últimos 30 anos e nunca passou um sabãozinho. Ele abriu a geladeira, pegou a garrafa com água, encheu até a borda e me entregou. Parecia um teste. Na hora pensei: "O que vou fazer? Beber ou devolver o copo cheio?" Não demonstrei reação, não queria ofender o cara e precisava do quarto, peguei o copo, agradeci e bebi até a última gota. João parecia acompanhar cada gole com um leve movimento da cabeça; um sorriso enigmático foi surgindo à medida que o copo foi se esvaziando em minha boca. Quando terminei ele sorriu satisfeito. Senti que havia passado no "teste". Acertamos o preço e no dia seguinte levei a minha vida, dentro de uma pequena mala, para o tal quarto. Era uma quarta-feira do dia 20 de maio de 1987. João havia sido um advogado excepcional, de família ilustre, com sobrenome em placa de avenida aqui no Rio de Janeiro, mas pelo pouco que sei, se atrapalhou com opções de mais, decisões de menos e acabou um homem solitário, sem filhos e alcoólatra... Seu apartamento ficava na Rua Paissandu, próximo da esquina com a Rua Marques de Abrantes, no bairro do Flamengo. Ele alugava um dos quartos para ajudar no pagamento do condomínio. Para mim era muito prático, pois eu pegava o ônibus da linha 523, quase na porta, e me deixava em frente a faculdade, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Sua casa me lembrava um cenário de novela; eram móveis antigos, de bom gosto, parecia que o relógio havia parado nos anos 70 dentro daquelas paredes. Tudo bem arrumado, muito limpo, mas sem sentido: sem perfume de mulher, sem gargalhadas, sem criança ou passos de alguém chegando. Apenas um contínuo e incomodo estado de silêncio. Sou um dependente crônico de família que me impede de entender como um homem consegue ficar só, sem mulher, sem o calor de uma presença?!? Morei neste apartamento por seis meses e, durante esse tempo, nunca vi alguém aparecer para visitá-lo. Poucas vezes nos encontramos ou conversamos longamente sobre qualquer assunto, apenas amenidades, "bom dia", "oi", "tudo bem?..." Mas lembro de uma conversa que tivemos uma vez; ele me contou que os homens de sua família morriam aos 63 anos. "Porque aos 63 anos?" Minha pergunta ficou sem resposta, ele apenas disse: "...Ricardo, os homens morrem primeiro!". Na hora achei que estava alcoolizado, mas pensando melhor agora no seu rosto, no seu olhar e no tom de sua voz, acho que ele estava apenas deprimido. Passou um tempo, me mudei para um conjugado no mesmo bairro e na semana em que João completou 63 anos, recebi a notícia da sua morte; ataque fulminante do coração! Que merda!... Foi um enterro mudo. Apenas meia dúzia de pessoas, incluindo o coveiro, apareceram. Seu caminho até a cova teve um imprevisto, não havia homens suficientes para tirar o caixão da capela e leva-lo até o "carrinho". Confesso que até então, nunca tinha visto uma mulher segurar na alça de um caixão. Minha namorada na época me indicou com os olhos para pegar a alça da frente à direita, destinada ao irmão, ao pai, ao melhor amigo... Fiquei "mexido" com isso. Foi estranho sentir nas mãos o peso dele, morto, sem vida. Enquanto andávamos um curto trajeto, lembrei-me do seu copo d'água e agora que havia morrido, alguém acabaria lavando aquele copo ou o jogaria lixeira abaixo. Os anos passaram depressa, cheguei a maio de 2012 e os giros da vida me trouxeram de volta para outro quarto, num outro bairro, num outro tempo. A solidão sabe pregar suas peças, as vezes chego aqui neste quarto tarde e dou boa noite para as portas do armário, são quarto mocinhas brancas, de puxador pequeno, discretas e solidárias. Acho até que nutrem algum respeito por mim. Semana passada, já tarde da noite, estava deitado e ouvi uma delas sussurrar para a outra: "...Acho que ele é um cara legal, sente saudade dos filhos... Uma pessoa que sente saudade não pode ser de toda má. Ele parece um anjo dormindo, um anjo que ronca..." Ao ouvir a conversa, de dentro do armário o cabideiro disse com os dentes acirrados e voz abafada: "Não se deixem enganar, minhas filhas, Lúcifer também foi anjo um dia." Ao ouvir tamanha baboseira, reagi aos gritos: "Velho idiota, segura essa roupa direito e cala a tua boca! Quero dormir!"
Bem... Eu apenas pensei em dizer, mas não disse.
Eu não discuto com armário.
Enterramos João no cemitério São João Batista, em Botafogo, num fim de tarde debaixo de uma chuva fina e sob um céu cinza. Nos afastamos em silencio olhando para o chão, como se procurássemos algum papel com um texto que justificasse o fim de algumas histórias ou o desperdício de outras... O que me consola é ter a certeza de que no curto trajeto entre a capela e minha cova, haverá mais pessoas presentes do que no enterro do João, ao menos filhos, filhas e alguns netos... Ainda sim, longe de mim qualquer pressa, tenho ainda que resgatar a sinceridade e deixar de fingir que sou um homem feliz.
Que Deus te tenha João!
É estranho me olhar no espelho pela manhã e assistir um rosto que não me representa. O tempo é como as ferrugens nas estruturas de ferro do cais, nos faz derreter, nos desmonta aos pouquinhos. No meu quinquagésimo terceiro aniversário, minha casa é um quarto numa rua pouco iluminada de Botafogo e meu casamento está guardado numa caixa de papelão num punhado de fotos desordenadas. Minha alegria é tão real como uma nota de três reais, mas sou sincero nesta mentira, chego a me convencer de que não sou tão triste assim...
Não é a primeira vez que a minha casa é um quarto na casa de alguém. Há 25 anos, em maio de 1987, recém-separado, estava na faculdade cursando desenho industrial e precisava de um lugar para ficar. Alguém conhecia alguém que conhecia o João B.; logo apareceu o telefone dele, eu liguei e marcamos para conversar. Na tarde do dia seguinte saio do elevador com um endereço rabiscado as mãos, acompanhando os números em cima das portas, até chegar no 502. Coloquei-me a frente no que me pareceu ser a porta da sala, arrumei o cabelo diante de um espelho imaginário e apertei o botão da campainha. Um som de campainha velha e abafada soou lá por dentro. Escutei o barulho da tranca em movimento, só que na porta ao lado. Virei-me apressado e cheguei junto, não queria parecer um idiota diante da porta errada. Cheguei a pensar: "...mas quem recebe alguém pela porta da cozinha?" Um senhor gorducho, com um olhar indefinido e cabelos ralos me encarou apertando os olhos, esperei alguns segundos achando que ele iria dizer alguma coisa, mas diante do seu embaraçoso silencio eu disse "Oi". O sujeito não respondeu, mandou-me entrar com um movimento da cabeça em direção a porta... Em pé, no meio da cozinha, ele se apresentou formalmente: "Boa tarde, meu nome é João B. Você deve ser o Ricardo "do quarto". Posso te oferecer alguma coisa? Aceita um pouco de água?" Ele tinha um tom formal e elegante, parecia um diplomata... Seus cabelos ralos estavam penteados para trás, fixados com algum tipo de "gomex", suas bochechas eram fartas e coradas. Deu para ver que estava de pijama: "...as três horas da tarde?" pensei. Eu aceitei a sua água, mas para minha surpresa ele pegou um copo com cara de pote de requeijão, que estava virado de boca sobre um prato em cima da geladeira; sem brilho, vulgar, cheio de marcas de dedos, opaco, empoeirado, com cara de sujo mesmo e com uma pequena trinca na borda. Tive a sensação de que ele havia oferecido aquele copo para qualquer um que chegou a sua porta nos últimos 30 anos e nunca passou um sabãozinho. Ele abriu a geladeira, pegou a garrafa com água, encheu até a borda e me entregou. Parecia um teste. Na hora pensei: "O que vou fazer? Beber ou devolver o copo cheio?" Não demonstrei reação, não queria ofender o cara e precisava do quarto, peguei o copo, agradeci e bebi até a última gota. João parecia acompanhar cada gole com um leve movimento da cabeça; um sorriso enigmático foi surgindo à medida que o copo foi se esvaziando em minha boca. Quando terminei ele sorriu satisfeito. Senti que havia passado no "teste". Acertamos o preço e no dia seguinte levei a minha vida, dentro de uma pequena mala, para o tal quarto. Era uma quarta-feira do dia 20 de maio de 1987. João havia sido um advogado excepcional, de família ilustre, com sobrenome em placa de avenida aqui no Rio de Janeiro, mas pelo pouco que sei, se atrapalhou com opções de mais, decisões de menos e acabou um homem solitário, sem filhos e alcoólatra... Seu apartamento ficava na Rua Paissandu, próximo da esquina com a Rua Marques de Abrantes, no bairro do Flamengo. Ele alugava um dos quartos para ajudar no pagamento do condomínio. Para mim era muito prático, pois eu pegava o ônibus da linha 523, quase na porta, e me deixava em frente a faculdade, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Sua casa me lembrava um cenário de novela; eram móveis antigos, de bom gosto, parecia que o relógio havia parado nos anos 70 dentro daquelas paredes. Tudo bem arrumado, muito limpo, mas sem sentido: sem perfume de mulher, sem gargalhadas, sem criança ou passos de alguém chegando. Apenas um contínuo e incomodo estado de silêncio. Sou um dependente crônico de família que me impede de entender como um homem consegue ficar só, sem mulher, sem o calor de uma presença?!? Morei neste apartamento por seis meses e, durante esse tempo, nunca vi alguém aparecer para visitá-lo. Poucas vezes nos encontramos ou conversamos longamente sobre qualquer assunto, apenas amenidades, "bom dia", "oi", "tudo bem?..." Mas lembro de uma conversa que tivemos uma vez; ele me contou que os homens de sua família morriam aos 63 anos. "Porque aos 63 anos?" Minha pergunta ficou sem resposta, ele apenas disse: "...Ricardo, os homens morrem primeiro!". Na hora achei que estava alcoolizado, mas pensando melhor agora no seu rosto, no seu olhar e no tom de sua voz, acho que ele estava apenas deprimido. Passou um tempo, me mudei para um conjugado no mesmo bairro e na semana em que João completou 63 anos, recebi a notícia da sua morte; ataque fulminante do coração! Que merda!... Foi um enterro mudo. Apenas meia dúzia de pessoas, incluindo o coveiro, apareceram. Seu caminho até a cova teve um imprevisto, não havia homens suficientes para tirar o caixão da capela e leva-lo até o "carrinho". Confesso que até então, nunca tinha visto uma mulher segurar na alça de um caixão. Minha namorada na época me indicou com os olhos para pegar a alça da frente à direita, destinada ao irmão, ao pai, ao melhor amigo... Fiquei "mexido" com isso. Foi estranho sentir nas mãos o peso dele, morto, sem vida. Enquanto andávamos um curto trajeto, lembrei-me do seu copo d'água e agora que havia morrido, alguém acabaria lavando aquele copo ou o jogaria lixeira abaixo. Os anos passaram depressa, cheguei a maio de 2012 e os giros da vida me trouxeram de volta para outro quarto, num outro bairro, num outro tempo. A solidão sabe pregar suas peças, as vezes chego aqui neste quarto tarde e dou boa noite para as portas do armário, são quarto mocinhas brancas, de puxador pequeno, discretas e solidárias. Acho até que nutrem algum respeito por mim. Semana passada, já tarde da noite, estava deitado e ouvi uma delas sussurrar para a outra: "...Acho que ele é um cara legal, sente saudade dos filhos... Uma pessoa que sente saudade não pode ser de toda má. Ele parece um anjo dormindo, um anjo que ronca..." Ao ouvir a conversa, de dentro do armário o cabideiro disse com os dentes acirrados e voz abafada: "Não se deixem enganar, minhas filhas, Lúcifer também foi anjo um dia." Ao ouvir tamanha baboseira, reagi aos gritos: "Velho idiota, segura essa roupa direito e cala a tua boca! Quero dormir!"
Bem... Eu apenas pensei em dizer, mas não disse.
Eu não discuto com armário.
Enterramos João no cemitério São João Batista, em Botafogo, num fim de tarde debaixo de uma chuva fina e sob um céu cinza. Nos afastamos em silencio olhando para o chão, como se procurássemos algum papel com um texto que justificasse o fim de algumas histórias ou o desperdício de outras... O que me consola é ter a certeza de que no curto trajeto entre a capela e minha cova, haverá mais pessoas presentes do que no enterro do João, ao menos filhos, filhas e alguns netos... Ainda sim, longe de mim qualquer pressa, tenho ainda que resgatar a sinceridade e deixar de fingir que sou um homem feliz.
Que Deus te tenha João!
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