Meu Blog
A eternidade é o
momento que se renova
Nosce te ipsum
Conhece a ti mesmo
γνωθι σεαυτόν
γνωθι σεαυτόν
Lá fora a chuva dava sua risada alta e as nuvens respondiam com o
clarão de seus relâmpagos. Aqui no meu canto, sozinho e cercado de pensamentos,
um lado menos cult rosnava sua presença; meu estomago – eu estava com fome! Olhei pro meu umbigo,
olhei para a chuva e abaixei os ombros; não havia coragem que me fizesse sair aquela
hora. Banho tomado, chinelo velho roçando os pés, cílios pesados... Então a
ideia de morrer de fome não me pareceu tão amarga assim, desde que eu pudesse
morrer de banho tomado, cercado de pensamentos sonolentos e sobre minha cama
quentinha... Pousava meus cabelos sobre travesseiros macios, assumidamente resignado, quando um fio de voz surgiu do imaginário, como
uma bolha de ar que parte do fundo do rio em direção à liberdade que o céu
realiza. A voz disse apenas três palavras: “Vá pra cozinha!” E tudo que achei
me pertencer e a elas dominar, foi o palco de grande revolução. O travesseiro
jogou meus cabelos pro lado, a cama deu barrigada e dela fui cuspido, meus
chinelos se agarram aos meus pés e a porta do quarto abriu me convidando a sair; e
lá fui, sonolento e desanimado para cozinha. A alternativa de morrer de fome
ainda parecia mais apropriada do que estar aquela hora procurando frigideiras e
panelas em sombrios armários debaixo da pia. Com um interrompido suspiro,
minha carne expeliu sua resignação: “Há, foda-se!” E fui preparar meu jantar...
Joguei para o inferno de águas ferventes, três batatas inocentes acordadas em
meio a outras batatas inocentes e impessoais. Essas terminariam como um bocado de purê sobre meu prato. Amassei as batatas cozidas com o garfo
mais próximo, até com raiva, insano, eu queria era ter morrido de fome sobre lençóis
frios e macios, mas cá estou, vivo e cozinhando. Fui acrescentando aos poucos
leite gelado e manteiga sobre as batatas, pareciam se amar, se atraíam, se
fundiam, fizeram amor dentro da minha panela. Eu só levantava a sobrancelha,
queria apenas que tudo fosse breve. De dentro da geladeira um queijo de minas
me gritava, sua voz abafada dizia que amava o leite também e que queria estar junto
do seu fim. Dane-se você, queijo, vai para a panela também, mas com sofreguidão. O cortei em cubos, onde uns foram se derreter inteiros e outros amassei no
garfo como fiz com a batata. Fui até a geladeira beber no gargalo água gelada. Estava a fechar a porta quando um borrão de
imagem me fez lembrar do bacon da Sadia, esse borrão o condenou a panela,
cortado em fatias tão finas como a minha paciência, ainda pude vê lo derreter-se e fundir-se aos condenados. Droga, que venham
outros mais, então peguei a cebola, arranquei seus cabelos, me desfiz das suas
casacas velhas, a afoguei na torneira e fatiei; rodelas e mais rodelas se espalharam
em volta da faca. Um file de alcatra refugiava-se tremula e fatigado por
entre outras carnes na geladeira, sou um carnívoro convicto e desalmado. A luz interna da geladeira acendeu de novo, eu apareci e o puxei pela bandeja de isopor onde ele se escondia coberto de uma fina camada de plástico escrito: "Melhor consumir em três
dias." Queria mais, queria que sofresse e fui buscar o sal, a pimenta do
reino, o molho inglês e um pequeno pedaço de alho amassado com a colher que
servia para misturar tudo... Na cozinha não cozinho com ética, apenas com
pressa! Um limão pendurado no registro de água da cozinha foi à gota d’agua de
tanta maldade, cortei o limão em duas partes e fiz cachoeira sobre a carne, gotas de molho inglês, pó de pimenta, esfregar de dedos com sal e tudo em
fogo baixo, lento, bem lento, cozinhando... Sentei-me com olhar sem expressão, estava diante
daquilo que mataria o que me matava, e comi as vistas de sorrisos de satisfação do meu chinelo, da minha cama, do meu travesseiro... Ao fim de tudo deite-me, agora não
mais para morrer de fome, mas para viajar no tempo, nas horas de sono que me levariam para a manhã do dia seguinte.
Bom, foi assim...