Felipe Outubro de 2004 |
A tímida luz azul da TV da sala, parecia uma canção silenciosa que fazia o contorno dos móveis dançarem na parede oposto. Eu estava meio sonolento, cansado de um longo dia de trabalho. Um brilho de relâmpago desviou meu olhar para o lado e me despertou os sentidos, estiquei a mão na direção de onde havia deixado o controle remoto e abaixei o volume da TV; o som da chuva encheu a sala. Parecia que centenas de folhas secas das árvores altas, estivessem precipitando-se como estrelas cadentes sobre a grama, fugindo de um vento bandido em suas copas. Será que
as janelas da área estão fechadas? Meu gravador mental colocou para tocar o que minha mulher disse na última chuva: “Você não viu que estava
chovendo? O piso está todo molhado...” Ouvi essa pergunta na chuva
anterior, não queria ouvir de novo... Procurei com meus pés cegos os chinelos, achei um pé, o outro estava ao lado cochilando. Fui até a área dos fundos. Quanto mais eu me aproximava, mais o som da chuva envolvia meu corpo e me respingava os ouvidos. Eu adoro a chuva! O som da
chuva me cativa, exerce uma espécie de magia aos meus
sentidos, me faz sentir distante, saudoso, relaxado; já o cheiro da chuva, parece cheiro de sexo. Me excita,
me dá vontade de ir pro quarto fazer amor... Da janela da área eu
parecia procurar alguém entre seus pingos, meus olhos saltavam de uma gota para
outra, e fazendo deles gotas também, caíam abatidos nas poças da rua. Há
tantos rostos na chuva, vultos em movimento, histórias antigas sequestradas de minha memória que retomam a vida. Depois de alguns minutos, esquecido que tinha ido até ali para fechar as vidraças, encontrei o rosto do meu filho sorrindo. Sim, era Felipe com 2 anos sorrindo. Lembrei de uma chuva de 19 anos anos atrás. Eu estava em outra casa, em outra cidade e da mesma forma extasiado com o tal choro das nuvens e as broncas do trovão, deixando meus ouvidos se molharem com essa melodia. Felipe estava no meu colo, quieto, sonolento, com suas bochechas gordinhas e morenas e um doce olhar de anjo
barroco. Ele demorou muito mais do que a Thaís para falar e quando suas primeiras
palavras chegaram eram confusas, improvisadas, com as vogais duplicadas; parecia um estrangeiro falando... Muitas vezes achei que que ele ficava em silêncio, vez por outra, porque se cansava de se fazer entender. Sabe-se lá por quais birutices me tomam a imaginação: pode ter sido um defeito ocorrido na gestação, ou o médico me bateu com força demais na cabeça e não na bunda, ou meu
pai me deixou cair do colo quando eu era bebê, enquanto minha mãe tomava banho e
nunca contou a ninguém. Não sei, não sei... Mas às vezes digo do nada umas birutices...
Quebrei o silêncio e falei: “Filho, você nasceu numa noite assim,
noite de chuvarada...”. Thaís estava sobre a cama de casal brincando com sua boneca; ela sempre foi uma menina muito esperta e atenta. Aos
quatro anos já falava fluentemente um milhão de palavras, com
todos os esses e erres por direito. É mulher, elas são assim desde pequenas... Quando terminei de falar, as duas desceram da cama, atravessaram o
quarto e vieram até a poltrona, onde eu estava sentado com Felipe no meu colo, e disse: “Pai, o Felipe
nasceu numa noite de chuva?” Sem desviar o olhar lá de fora, e continuando a acariciar os cabelos de meu filho, respondi: “Foi. Chovia muito, mais do que hoje. Era domingo à
noite, voltávamos de carro para casa e você dormia no banco de trás. Sua mãe de
repente bateu com a mão na testa e disse que havia esquecido de comprar
leite ou alguma coisa assim. Contrariado tive que dar meia volta no carro e logo estávamos entrando num supermercado da Barra”. Thaís me ouvia atenta com aqueles
olhões azeitona estampados em mim. Continuei: “O mercado estava meio vazio, quase fechando... Já tínhamos
pegado o que fomos ali comprar, quando sua mãe veio lá do fundo daquele imenso supermercado com um sorriso no rosto: ela havia achado a seção dos BEBES DE COLO”.
Thaís não se conteve e falou, como num susto: “BEBES DE COLO? Bebês de verdade?” Eu respondi calmamente: “Claro!
E existe outro tipo de bebês?...” Ela ficou em silencio me encarando, meio lá e
meio cá em acreditar inteiramente na história, mas queria que eu continuasse a contar
como o Felipe nasceu: “Naquele fim de semana havia tido uma grande promoção das fraldas Johnson&Johnson; quem levasse cinquenta embalagens de suas fraldas, ganharia um BEBE DE COLO. O sucesso foi tão grande que as prateleiras estavam quase vazias. Ai eu disse pra sua mãe: 'Que legal, né? Mas vamos embora, não viemos comprar
fraldas.' Eu não estava com planos de
levar um BEBE DE COLO naquele dia, só queria ir para casa, tomar um banho e
dormir. Foi quando ouvimos um som que parecia de um gato se espreguiçando, saindo de uma das caixas que continha um BEBE DE COLO; isso chamou a nossa
atenção. Aproximamos nossos rostos para vermos melhor e percebemos que a
embalagem estava meio aberta, o que fez com que aquele BEBE DE COLO despertasse.” Olhei para Thaís bem sério e perguntei: “Sabe o que estava escrito na frente da embalagem com uma letra bem
grande, em azul escuro?” Ela balançou a cabeça dizendo que não. Eu
disse: “FELIPE”. Sua reação foi engraçada, seus olhos esbugalharam, sua
boca se abriu num grande sorriso. Felipe, que a tudo ouvia em silêncio, repetiu seu nome sorrindo:
“Fiípe!” Eu disse: “Isso
mesmo filho, era você! Sua mãe esticou os braços e pegou aquela caixa, meio aberta, que tinha um BEBE DE COLO. Só não entendi porque ela abraçou a caixa e, sem mais nem menos, disse que
queria levá-lo para casa. Fiquei assustado com o brilho em seus olhos, brilho
de: “eu vou fazer isso!” Reagi na hora: ‘Porque? Pra que? Está maluca? Por que iríamos fazer
isso?’. Sua mãe também não entendia bem os motivos, e gaguejou um pouco ao dizer: “Ele tem olhos grandes como os
meus... Eu gostei disso!”. Então retruquei: ‘Como assim, tem
os olhos grandes como os seus? Ele está de olhos fechados!’ Ai ela desandou a falar, disse que havia
gostado da cara dele, que ele estava chorando, que deveria estar com fome e
sentindo-se sozinho naquela prateleira, que não era justo, e blá, blá, blá... Ela não parava
de falar... Eu disse que não era um bom dia para levar um BEBE DE COLO para casa, que amanhã seria segunda-feira, não se compra um BEBE DE COLO num domingo a noite... Era melhor deixarmos para outro dia, um dia sem chuva, quem sabe...
Qual nada! Não havia nada que eu dissesse que a fizesse mudar de ideia, que a
fizesse colocar de volta aquela caixa na prateleira. Cocei a cabeça e fui ver o preço, foi quando dei um grito.” Thaís se
assustou e perguntou: “Gritou
por que, pai?” Respondi: “Por quê? Era muito caro, era um produto importado do México. Por isso que ainda estava na
prateleira...” Thaís perguntou: “Muito caro?” Eu
respondi: “Muito... Eu tinha que levar mais de cem
pacotes de fraldas para ganhar um BEBE DE COLO importado... Além do mais,
era um BEBE DE COLO mexicano, ele estava preparado para falar espanhol e
não português, por isso o Felipe é tão moreno e está demorando a falar direito...” Ela
fez uma cara engraçada, para ela fazia sentido o que eu estava dizendo. “E depois, pai?” “Depois? O que era
de se esperar: fomos pro caixa do supermercado com duas caixas de leite, um
pacote de pão de forma, queijo, presunto, 100 pacotes de fraldas e um BEBE DE COLO. Thaís colocou as duas mãozinhas na boca e riu...
Felipe também e eu caí na gargalhada com a reação deles. “Quando chegamos em casa sua mãe saiu a catar coisas para preparar um bercinho para o BEBE DE COLO que trouxemos, ou, como ela me atropelou dizendo: ‘Não é BEBE DE COLO, é Felipe o nome dele...’ Enquanto eu retirava
algumas coisas do armário para conseguir guardar 100 pacotes de fraldas, perguntei
a ela: ‘Por quanto tempo vamos ficar com ele?’ Ela respondeu: ‘Por toda a nossa vida...’ Naquele
hora entendi que aquele BEBE DE COLO, o Felipe, não era uma caixa que havia sido deixada nas prateleiras do supermercado, mas que esperava por nós, que fôssemos lá buscá-lo, que ele nos pertencia, assim como nós pertencemos a
ele...” Thaís perguntou: “Ele dormiu aonde, pai?” Eu disse: “Naquela noite
ele dormiu na sua cama, ele numa cabeceira e você na outra. No dia seguinte fui comprar o bercinho dele.” Interrompi a conversa e disse: “Chega! Agora todo mundo pra cama!” Thais não se
mexeu, olhou para mim com o canto dos olhos e perguntou: “Pai, vocês também me trouxeram do
supermercado?” Confesso que balancei nessa hora, me deu vontade de abraçar e beijar muito ela... mas respondi no mesmo tom da conversa
que estávamos tendo: “Não, claro que não, que bobagem!
Com você foi diferente, foi a cegonha que trouxe...” Ela concordou pensativa enquanto balançava a cabeça. Ela e sua boneca foram para a cama, deitaram e dormiram. Eu ainda
fiquei um pouco mais, abraçado ao meu filho ”mexicano”, ouvindo a chuva cair e depois fui dormir
também.