Baseado Em Fatos Reais
Era fim de uma tarde de domingo, fui até a varanda ver o dia se pôr,
quem sabe teria uma Lua para enfeitar o céu ou me refrescaria com as brisas desprezadas pelo mar. Mal toquei os pés do lado de fora e o telefone tocou
insistente, surdo aos meus avisos de que já estava indo atender... Dei um "alô"
pobre, quase aborrecido, e escutei a voz de Rebeca do outro lado da linha; diferente, doída, e disse: “Meu primo acaba de falecer...” Minha boca se comprimiu e minhas sobrancelhas se apertaram por puro instinto. “Mais que merda, (pensei na hora) logo num domingo à noite...” Sei que a morte é tão inevitável quanto imprevista, mas ao menos deveria acontecer só durante a semana. Tenho muita má vontade com a morte, com a minha, principalmente... Sempre reajo da mesma forma quando sei da morte de alguém próximo: nos primeiros dois segundos sou tomado por um espanto incrédulo, como se me contassem uma mentira absurda. Nos segundos seguintes sinto uma
inesperada aceitação dessa morte, acompanhada dos meus ombros caídos e de uma sensação de vazio
irreparável; um sentimento renovado e inconfessável de medo de morrer vem me lembrar que ela é real e que ronda
à minha volta. Por fim, no segundo final, sinto uma pitada de consolo ao ver que ainda dessa vez, não sou eu o falecido. Lembro de ter dito alguma coisa como: "Sinto muito, meu bem... Era casado? Tinha filhos?" Então disse que me vestiria e iria ao seu encontro, ela estava na casa do seu primo com a viúva, um dos filhos e alguns amigos. Minha visita à varanda
ficou adiada, ainda que fosse domingo à noite, eu me sentia numa segunda a tarde abafada... Fiquei atrapalhado, não sabia exatamente o que fazer, não sabia se iria de bermuda e camiseta, afinal era noite de domingo, "claro que
iriam entender..." pensei... Resolvi
tomar um banho rápido e durante o banho acabei me barbeando. Enquanto me
barbeava pensava na roupa que iria usar, se poria ou não perfume, se iria de
tênis ou com o sapato preto que uso no trabalho... O motivo de pensar nessas bobagens era porque eu
não conhecia o cara, infelizmente não tinha pelo que chorar por ele; não tivemos nossos momentos, não fomos em nossos aniversários, nunca nos sentamos à
mesa para uma refeição, não bebemos juntos ou contamos piadas um para o outro. Não
tivemos a oportunidade de envelhecermos juntos. Ele era, para mim, o mais
absoluto estranho e minha única referência era dele ser o primo de Rebeca. Ao
chegar no endereço que rabiscara no verso de uma nota de compra da padaria, desci do carro
e seguia em direção ao interfone do prédio quando de súbito, vi se aproximar um casal com uma mocinha. A menina
enfiou decidida a chave no portão e entrou seguida pelo casal e por mim mesmo. Eles estavam em silêncio, seus rostos tinham desenhos pontiagudos e a pressa no caminhar me fez desconfiar que eram conhecidos do morto. Seguimos até o elevador em movimentos que pareciam
ensaiados, dobrando paredes e cruzando corredores. O homem deve ter chegado na mesma conclusão do que eu, pois, inesperadamente, retardou um passo, virou-se
para mim e disse num tom de confessionário: “É a filha dele e ela não sabe que ele morreu...” “Meu Deus!” Foi tudo que pude pensar na hora... Há menos de
uma hora eu estava indo até a varanda ver qualquer coisa dessa noite de domingo e
agora tenho o segredo da morte de um pai, estando ao lado da sua filha... Estávamos os dois contrariados; ele não
pediu para morrer e eu tampouco de estar ali. Quem de nós é proprietário da sua vida? Quem de nós pode soletrar com autoridade e sem erro, o que vai acontecer daqui uma hora, ou na simples passagem de um minuto? Enquanto o elevador subia mais lento do que o de costume, olhei de canto de olho para ela. Sabia que em poucos instantes estaria
chorando, em poucos instantes sua vida seria diferente do que havia conhecido
até então. Sou pai de duas mocinhas, tive vontade de abraçá-la como se fosse minha filha, pois eu já estive no seu lugar. Num outro domingo a noite, há alguns anos, minha tia me telefonou e me chamou para ir a sua casa. Achei
sua voz estranha, mais humana, menos dura e segura como de costume. Quando lá cheguei a porta se abriu como num susto, nem me lembro de ter tocado a companhia, como se ela estivesse me esperando com a maçaneta nas mãos. Ela não me cumprimentou, apenas disse: “Vamos
para sala...” Uma formalidade inesperada me tomou e
caminhamos em silêncio. Ela se sentou numa poltrona e eu no sofá à
sua frente. Tão logo me acomodei, perguntei: “O que foi tia?” Ela calmamente disse que no dia seguinte precisaríamos sair juntos, tínhamos algo para fazermos pela manhã. Puxei um sorriso de canto de boca por causa dessa sua ideia "fora de hora" e disse que não seria possível, pois no dia seguinte, segunda-feira, eu iria trabalhar. Sem tirar seus olhos dos meus ela disse, mais pausadamente ainda, que eu não iria trabalhar naquela segunda... Não sou tão bobo assim, senti que havia um universos de coisas por detrás dos nossos silêncios. Perguntei: “Tia, aconteceu alguma coisa?” Ela balançou a cabeça dizendo que sim... Meus olhos caminharam pelo seu
rosto, comecei a sentir medo das minhas perguntas; hoje sei que saboreei meus últimos instantes de inocência, antes de saber o que ela tinha para me dizer... Então perguntei: “Foi meu pai ou
a minha mãe?” A resposta veio em seguida: “Foi seu pai.” Senti como se uma ampola do absurdo estivesse estourado dentro de mim, consigo lembrar até hoje do cheiro daquela emoção... Ainda sim, agradeço a forma seca e
objetiva com que tivemos aquela conversa, como é a morte, seca e
objetiva. Não há o que negociar mais, nem rever, nem amenizar, não há mais perguntas a fazer, ou perdões a pedir, o fato é que a morte
é o fim de um filme sem letreiros, e, dentre todas as coisas da vida, é a mais absoluta ruptura. Não sei descrever a emoção daquela hora, lembro que apoiei meu cotovelo esquerdo no joelho, coloquei o queixo sobre os dedos da mão fechada, abaixei os olhos e pensei: “Eu não
tenho mais pai!” Durante anos roubei de meu pai várias
oportunidades de receber o meu carinho. Tenho ainda guardado dentro de mim muitos e muitos abraços que não lhe dei, estocados em prateleiras empoeiradas, ainda embrulhados, ainda com etiqueta; abraços que
me apertam por dentro e não por fora. Voltei para casa para
contar ao meu irmão que também não tinha mais pai. Ele dormia, tinha faculdade pela manhã. Achei
melhor deixá-lo em paz. Peguei uma folha de papel e escrevi: “Me acorde. Não saia antes de falar comigo!!” E colei
no espelho do banheiro. Fui para sala, sentei no sofá e chorei abraçado comigo mesmo por quase uma hora e fui dormir. No dia seguinte foi a vez do meu irmão chorar, só que abraçado comigo. Anos depois, numa outra segunda-feira pela manhã, eu estava no Cemitério Municipal de Macaé no enterro do primo de Rebeca. O
que me vem à lembrança desse dia é o som dos passos das pessoas que caminhavam comigo para a sepultura; havia pessoas à minha frente, dos lados e atrás. Caminhávamos
lentos e compassadamente. Sobre os pés havia cascalhos, pisos irregulares, e a soma do som desses passos, curiosamente, me trouxe algum conforto, porque um enterro consegue
ser mais triste se não houver o calor das outras pessoas que vieram se despedir com você. Foi quando senti uma fisgada de lamentação, no meio das costelas, por não tê-lo conhecido melhor. Depois a sequência de sempre: choros contidos, silêncio, desce
o caixão, recolhe-se as cordas, choros contidos, mais silêncio, homens sem coração fecham tudo com uma tampa,
barulho de pá assentando o cimento, mais choros contidos e mais silêncio... A morte e o
nascimento são personagens de um mesmo processo, onde um termina, inicia-se o
outro. Morte e
vida. Parecem as pontas distantes das asas abertas de um querubim, mas que também se tocam e se respeitam. O Deus em que
acredito está presente no choro e no sorriso, está presente no nascimento e na
morte. Dono dos processos que criou. Ainda que seja quase impossível entendermos a necessidade da morte, aceitamos com festa e alegria a realidade da vida.
Certamente porque nossas impressões baseiam-se numa visão espiritual míope,
acreditamos mais no que podemos ver e tocar em detrimento ao infinito de
realidades que desconhecemos e que habitam no invisível. Hoje é quarta-feira e faz um mês que ele morreu. Por coincidência, depois do jantar, fui até a varanda e lá estava ela, a Lua, indiferente a todas as mortes, plácida, linda, deslisando entre nuvens como uma folha caída num rio manso. A Lua é apenas uma pedra, estará no mesmo lugar depois que eu morrer, e diante da sua presença, concluí que é disso que é feita a vida, de um dia após o outro, entre Luas indiferentes e distantes.
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15-01-2014 |
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