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A eternidade é o
momento que se renova

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γνωθι σεαυτόν
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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

VOCÊ ME CONHECE?



Você me conhece?
Desculpe-me, não perguntei se você sabe o meu nome. Perguntei se você me conhece. Estou longe de ser apenas um nome, uma imagem, uma cor de pele, um cheiro. Eu sei que você sabe coisas sobre mim, mas saber coisas ainda é muito pouco para dizer que me conhece. O que você viu ou ouviu de mim são apenas impressões; são fotos em movimento. Sabe, quando minha mãe morreu eu não derramei minhas lágrimas, cheguei a ouvir de alguém que meu comportamento foi estranho, mas eu bem sei o que senti. Vi minha mortalidade exposta, a matéria que fui formado se degradar, oca, se decompondo a minha frente. Ver minha mãe morta foi como assistir cenas do meu futuro. Chorei, sim, e muito, mas num lugar onde os olhos não enxergam e o entendimento não alcança. Você me conhece? Sabe das coisas que me alegram ou das coisas que me borro de medo só de pensar? Sabe quais são meus arrependimentos? Minhas raivas? Minhas mancadas? O que você sabe sobre as vidas que tive? Das pessoas que sementaram a minha vida e  partiram deixando seus frutos?... Você não vai me descobrir apenas me olhando, porque mesmo estando quieto e parado como uma estátua esverdeada pelo tempo, eu posso estar voando entre meus mundos, ou saboreando uma música que canto para mim mesmo, posso estar num passado que foi bom ou vivendo novamente momentos que mudaram o rumo da minha vida; e você achando que estou ali na sua frente parado como uma estátua. Tolo! O pensamento é um universo em movimento, mas apesar da sua imensidão, só eu consigo ver. Não, por favor, não estou te acusando de desinteresse ou de apatia... Confesso que também não sei muito sobre você, além de um pouco mais do que o seu nome... Você sabia que quando estou estressado, surgem bolhas entre meus dedos, o que foi? Está rindo de mim? Pois é, ninguém sabe disso, porque as bolhas crescem e morrem entre meus dedos e ninguém as vê. Imagina, então, as coisas que crescem e morrem dentro de mim que só eu assisto acontecer, que me motivam a sorrir aparentemente sem motivo ou de chorar do mesmo jeito. Tem dias que só quero chutar gatos, ter apenas uma grande escada para subir, como se estivesse indo para algum lugar, mas apenas subir os degraus que só me cobram ritmo, ou simplesmente sentar no banco de trás do ônibus, circular de preferencia, e apenas ir sem lembrar em que parada vou descer. Achou estranho isso? Você também deve ter tido os seus dias de fúria e de abandono, caramba, agora percebo que também não fui contigo o que te cobro, é essa merda de cegueira que a rotina nos desbota. Acho que eu mesmo preciso me conhecer melhor ao invés de deixar a cargo de alguém que faça isso. Vou indo, tenho escadas a subir e ônibus a viajar... mas ao menos sinto que preciso te dizer uma coisa. Desculpa o meu egoísmo. Até mais...

sábado, 5 de julho de 2014

AS BOBAGENS QUE CONTAVA PARA MEUS FILHOS...




Felipe
Outubro de 2004
A tímida luz azul da TV da sala, parecia uma canção silenciosa que fazia o contorno dos móveis dançarem na parede oposto. Eu estava meio sonolento, cansado de um longo dia de trabalho. Um brilho de relâmpago desviou meu olhar para o lado e me despertou os sentidos, estiquei a mão na direção de onde havia deixado o controle remoto e abaixei o volume da TVo som da chuva encheu a sala. Parecia que centenas de folhas secas das árvores altas, estivessem precipitando-se como estrelas cadentes sobre a grama, fugindo de um vento bandido em suas copas. Será que as janelas da área estão fechadas? Meu gravador mental colocou para tocar o que minha mulher disse na última chuva: “Você não viu que estava chovendo? O piso está todo molhado...” Ouvi essa pergunta na chuva anterior, não queria ouvir de novo... Procurei com meus pés cegos os chinelos, achei um pé, o outro estava ao lado cochilando. Fui até a área dos fundos. Quanto mais eu me aproximava, mais o som da chuva envolvia meu corpo e me respingava os ouvidos. Eu adoro a chuva! O som da chuva me cativa, exerce uma espécie de magia aos meus sentidos, me faz sentir distante, saudoso, relaxado; já o cheiro da chuva, parece cheiro de sexo. Me excita, me dá vontade de ir pro quarto fazer amor... Da janela da área eu parecia procurar alguém entre seus pingos, meus olhos saltavam de uma gota para outra, e fazendo deles gotas também, caíam abatidos nas poças da rua. Há tantos rostos na chuva, vultos em movimento, histórias antigas sequestradas de minha memória que retomam a vida. Depois de alguns minutos, esquecido que tinha ido até ali para fechar as vidraças, encontrei o rosto do meu filho sorrindo. Sim, era Felipe com 2 anos sorrindo. Lembrei de uma chuva de 19 anos anos atrás. Eu estava em outra casa, em outra cidade e da mesma forma extasiado com o tal choro das nuvens e as broncas do trovão, deixando meus ouvidos se molharem com essa melodia. Felipe estava no meu colo, quieto, sonolento, com suas bochechas gordinhas e morenas e um doce olhar de anjo barroco. Ele demorou muito mais do que a Thaís para falar e quando suas primeiras palavras chegaram eram confusas, improvisadas, com as vogais duplicadas; parecia um estrangeiro falando... Muitas vezes achei que que ele ficava em silêncio, vez por outra, porque se cansava de se fazer entender. Sabe-se lá por quais birutices me tomam a imaginação: pode ter sido um defeito ocorrido na gestação, ou o médico me bateu com força demais na cabeça e não na bunda, ou meu pai me deixou cair do colo quando eu era bebê, enquanto minha mãe tomava banho e nunca contou a ninguém. Não sei, não sei... Mas às vezes digo do nada umas birutices... Quebrei o silêncio e falei: “Filho, você nasceu numa noite assim, noite de chuvarada...”. Thaís estava sobre a cama de casal brincando com sua boneca; ela sempre foi uma menina muito esperta e atenta. Aos quatro anos já falava fluentemente um milhão de palavras, com todos os esses e erres por direito. É mulher, elas são assim desde pequenas... Quando terminei de falar, as duas desceram da cama, atravessaram o quarto e vieram até a poltrona, onde eu estava sentado com Felipe no meu colo, e disse: “Pai, o Felipe nasceu numa noite de chuva?” Sem desviar o olhar lá de fora, e continuando a acariciar os cabelos de meu filho, respondi: “Foi. Chovia muito, mais do que hoje. Era domingo à noite, voltávamos de carro para casa e você dormia no banco de trás. Sua mãe de repente bateu com a mão na testa e disse que havia esquecido de comprar leite ou alguma coisa assim. Contrariado tive que dar meia volta no carro e logo estávamos entrando num supermercado da Barra”. Thaís me ouvia atenta com aqueles olhões azeitona estampados em mim. Continuei: “O mercado estava meio vazio, quase fechando... Já tínhamos pegado o que fomos ali comprar, quando sua mãe veio lá do fundo daquele imenso supermercado com um sorriso no rosto: ela havia achado a seção dos BEBES DE COLO”. Thaís não se conteve e falou, como num susto: BEBES DE COLO? Bebês de verdade?” Eu respondi calmamente: “Claro! E existe outro tipo de bebês?...” Ela ficou em silencio me encarando, meio lá e meio cá em acreditar inteiramente na história, mas queria que eu continuasse a contar como o Felipe nasceu: “Naquele fim de semana havia tido uma grande promoção das fraldas Johnson&Johnson; quem levasse cinquenta embalagens de suas fraldas, ganharia um BEBE DE COLO. O sucesso foi tão grande que as prateleiras estavam quase vazias. Ai eu disse pra sua mãe: 'Que legal, né? Mas vamos embora, não viemos comprar fraldas.' Eu não estava com planos de levar um BEBE DE COLO naquele dia, só queria ir para casa, tomar um banho e dormir. Foi quando ouvimos um som que parecia de um gato se espreguiçando, saindo de uma das caixas que continha um BEBE DE COLO; isso chamou a nossa atenção. Aproximamos nossos rostos para vermos melhor e percebemos que a embalagem estava meio aberta, o que fez com que aquele BEBE DE COLO despertasse.” Olhei para Thaís bem sério e perguntei: “Sabe o que estava escrito na frente da embalagem com uma letra bem grande, em azul escuro?” Ela balançou a cabeça dizendo que não. Eu disse: FELIPE”. Sua reação foi engraçada, seus olhos esbugalharam, sua boca se abriu num grande sorriso. Felipe, que a tudo ouvia em silêncio, repetiu seu nome sorrindo: “Fiípe!” Eu disse: “Isso mesmo filho, era você! Sua mãe esticou os braços e pegou aquela caixa, meio aberta, que tinha um BEBE DE COLO. Só não entendi porque ela abraçou a caixa e, sem mais nem menos, disse que queria levá-lo para casa. Fiquei assustado com o brilho em seus olhos, brilho de: “eu vou fazer isso!” Reagi na hora: ‘Porque? Pra que? Está maluca? Por que iríamos fazer isso?’. Sua mãe também não entendia bem os motivos, e gaguejou um pouco ao dizer: “Ele tem olhos grandes como os meus... Eu gostei disso!”. Então retruquei: ‘Como assim, tem os olhos grandes como os seus? Ele está de olhos fechados!’ Ai ela desandou a falar, disse que havia gostado da cara dele, que ele estava chorando, que deveria estar com fome e sentindo-se sozinho naquela prateleira, que não era justo, e blá, blá, blá... Ela não parava de falar... Eu disse que não era um bom dia para levar um BEBE DE COLO para casa, que amanhã seria segunda-feira, não se compra um BEBE DE COLO num domingo a noite... Era melhor deixarmos para outro dia, um dia sem chuva, quem sabe... Qual nada! Não havia nada que eu dissesse que a fizesse mudar de ideia, que a fizesse colocar de volta aquela caixa na prateleira. Cocei a cabeça e fui ver o preço, foi quando dei um grito.” Thaís se assustou e perguntou: “Gritou por que, pai?” Respondi: “Por quê? Era muito caro, era um produto importado do México. Por isso que ainda estava na prateleira...” Thaís perguntou: “Muito caro?” Eu respondi: “Muito... Eu tinha que levar mais de cem pacotes de fraldas para ganhar um BEBE DE COLO importado... Além do mais, era um BEBE DE COLO mexicano, ele estava preparado para falar espanhol e não português, por isso o Felipe é tão moreno e está demorando a falar direito...” Ela fez uma cara engraçada, para ela fazia sentido o que eu estava dizendo. “E depois, pai?” “Depois? O que era de se esperar: fomos pro caixa do supermercado com duas caixas de leite, um pacote de pão de forma, queijo, presunto, 100 pacotes de fraldas e um BEBE DE COLO. Thaís colocou as duas mãozinhas na boca e riu... Felipe também e eu caí na gargalhada com a reação deles. “Quando chegamos em casa sua mãe saiu a catar coisas para preparar um bercinho para o BEBE DE COLO que trouxemos, ou, como ela me atropelou dizendo: ‘Não é BEBE DE COLO, é Felipe o nome dele...’ Enquanto eu retirava algumas coisas do armário para conseguir guardar 100 pacotes de fraldas, perguntei a ela: ‘Por quanto tempo vamos ficar com ele?’ Ela respondeu: ‘Por toda a nossa vida...’ Naquele hora entendi que aquele BEBE DE COLO, o Felipe, não era uma caixa que havia sido deixada nas prateleiras do supermercado, mas que esperava por nós, que fôssemos lá buscá-lo, que ele nos pertencia, assim como nós pertencemos a ele...” Thaís perguntou: “Ele dormiu aonde, pai?” Eu disse: “Naquela noite ele dormiu na sua cama, ele numa cabeceira e você na outra. No dia seguinte fui comprar o bercinho dele.” Interrompi a conversa e disse: “Chega! Agora todo mundo pra cama!” Thais não se mexeu, olhou para mim com o canto dos olhos e perguntou: “Pai, vocês também me trouxeram do supermercado?” Confesso que balancei nessa hora, me deu vontade de abraçar e beijar muito ela... mas respondi no mesmo tom da conversa que estávamos tendo: “Não, claro que não, que bobagem! Com você foi diferente, foi a cegonha que trouxe...” Ela concordou pensativa enquanto balançava a cabeça. Ela e sua boneca foram para a cama, deitaram e dormiram. Eu ainda fiquei um pouco mais, abraçado ao meu filho ”mexicano”, ouvindo a chuva cair e depois fui dormir também. 






terça-feira, 22 de abril de 2014

INSTRUÇÕES PÓSTUMAS

Baseado em fatos reais






Ontem a noite tive pesadelos. Eram imagens indefinidas que se moviam lentamente, misturadas com neblinas e um profundo silêncio. Hora eu dormia, hora estava acordado olhando as cortinas do quarto balançarem no ritmo de uma brisa bêbada. Parecia não ter fim. Numa das vezes que acordei lembrei dos meus pais; não foi bem deles, senti saudade da família que fomos, do aconchego, daquele cheiro de casa que só a nossa casa tem. Também pensei nos meus filhos, lembrei que nem sempre as promessas são tão fáceis de serem cumpridas, quanto são fáceis de serem ditas. Acabei pensando na minha vida e por fim na minha morte. Meu Deus... É a melhor forma de dominarmos o Ego, a vaidade, o orgulho, a soberba; lembrar que a vida é uma viagem de canoa sem remos, com uma grande queda d'água a frente. Meus olhos viravam de um lado para outro no escuro do quarto. Cheguei a gracejar com isso, imaginando como seria o meu epitáfio... Acordei com vontade de anotar os 10 pensamentos que tive sobre como deveriam agir comigo depois da minha morte:

1. Peço a quem esteja ao meu lado, quando eu morrer, que telefone primeiro para a minha irmã, o telefone está na agenda. Diga para ela avisar a família, mas quanto ao meu irmão, que ela avise pessoalmente, ele é meio emotivo nessa hora e pouco prático, sou capaz de apodrecer aos seus pés enquanto chora. Depois ela deverá avisar a minha tia. Ela é espírita de carteirinha e pelo que conheço, certamente na primeira reunião que frequentar, irá querer puxar assunto comigo, perguntar como vão as coisas e me dar instruções de como agir na espiritualidade; é bem o jeito dela... Por favor, diga a ela que não faça isso, estarei de péssimo humor por ter morrido. Partirei com o sentimento de ter deixado quase tudo pela metade, partirei com minhas dívidas emocionais, da forma que vim ao mundo, nada trouxe e nada levarei; apenas vestido de saudade. Dos medíocres lembro de uma de suas frases preferidas: “Não me arrependo de nada que fiz na vida.” Não posso dizer o mesmo. Acho que poderia ter sido um pai melhor do que fui, um filho melhor do que fui, um marido melhor, mas acho também que hoje, aos 55 anos, estou assistindo o mundo de uma forma diferente. Não é só os vinhos que se beneficiam com o tempo, mas infelizmente o tempo não pode ser rebobinado.

2. Sobre as centenas de fotos que tenho guardado no computador, façam o que quiserem delas. Que autoridade um corpo sem alma tem sobre os seus pertences? Qual das suas gavetas mais secreta permanecerá indevassada, arranhada com os olhos dos visitantes. Peço apenas que as fotos em que apareço com as mulheres que foram importantes na minha vida, que a elas sejam ofertadas e que decidam se jogarão fora ou colocarão numa moldura.


3. Quanto ao meu corpo, não me importa que destino seja dado. Desejo que sejam doados todos os órgãos, pele, córneas... não tenho apego a nenhum deles. Lamento apenas que não poderei senti-los, já costurados em outro corpo, pois adoraria continuar sentindo o cheiro do mar, o sabor dos alimentos, assistir a vitória de um por do Sol, sentir o aperto de um doce abraço. Se me dessem o capricho da escolha, eu gostaria de ser enterrado ao lado da minha mãe. Não que haja calor nos ossos ou mesmo a possibilidade de um abraço, mas me conforta pensar que dela saí e a ela retornei. Muitas vezes só minha mãe conseguia ter um segundo a mais de paciência comigo. Aquela italiana arretada não era de ficar batendo palmas para mim, mas quando as peças não se encaixavam e meus brinquedos estavam espalhados fora da caixa, quase sempre ela me ajudava a guardá-los, ainda que essa ajuda viesse na forma de um olhar.

4. O que tiver de dinheiro no banco, que seja dividido igualmente entre meus filhos; assim poderão comprar uma roupa, pagar um almoço, uma prestação qualquer. Me fará sentir ter feito um último gesto de pai.

5. Não quero que coloquem anúncio no jornal, acho isso ridículo, gaiato de mais para o meu gosto. Deixe que aqueles que me procurarem, saibam, cada um ao seu tempo, o que aconteceu comigo. Haverá aqueles que saberão logo, alguns levarão mais tempo, mas a maioria dos meus conhecidos, vez por outra, ao longo de suas vidas dirão: "Ricardo tá sumido, nunca mais apareceu..."
  
6. O caixão deverá ser do tipo básico, o mais barato da loja, sem madeira de lei, sem bronze polido adornando as extremidades, sem entalhes de madeira, sem crucifixo, sem acolchoados revestidos de cetim, sem a bandeira do Fluminense cobrindo a tampa, sem verniz e que em hipótese alguma haja flores. Isso tudo me soa muito irônico, enfeitar o lugar em que vou apodrecer... Na verdade não serei eu ali deitado, porque o que faz sermos o que somos está guardado na alma, ela é que nos faz movimentar como marionetes com seus fios da vida. Prefiro ser lembrado como vivi: as vezes denso, as vezes criativo, um romântico bobo, por vezes sacana, emotivo, um pouco inconveniente e apaixonado. Paguei caro por viver assim. Quanto ao enterro, que seja rápido, por favor. Não me deixem exposto por muito tempo, isso é cansativo até para quem já está morto.


7. Sobre o meu corpo nada de terno, nada que fique me apertando o pescoço. Uma camiseta nova da Hering de fio trançado na cor branca, beeem largona, me deixará muito satisfeito. Outra coisa, no meu armário tem alguns jeans desbotados, são os mais confortáveis, me vistam com o mais "fuleira", sem cueca e sem cinto. Nos pés apenas meias brancas, não vou andar por ai mesmo... Quanto as roupas que sobrarem, deem para qualquer um, não me importa.

8. O que posso dizer sobre o que virá quando eu abrir meus olhos do outro lado? Quem sabe se meus pais estarão me esperando? Quem sabe se realmente existe um céu e um inferno e em qual desses clubes, cuja a roleta só gira para dentro, serei aceito? Existem muitas verdades que nos são descritas, seus dogmas, seus cultos, suas regras; há muitas formas de se interpretar os desígnios de Deus. Acima de tudo eu sou um cristão convicto, mas gostaria de confessar uma esperança íntima e pessoal, que tem me confortado em momentos de angústia, de dúvidas e tristezas: O Deus em que acredito disse que haverá um julgamento e eu me submeterei a ele com alegria, pois será justo e definitivo. No século 1 da nossa era, por volta do ano 56, um cidadão romano de nome Saulo, de origem judaica, que passou a se chamar Paulo depois da conversão a fé cristã, escreveu quatro epístolas para a igreja grega da cidade de Corintios, fundada por ele tempos antes. Dessas quatro epístolas, duas estão perdidas, mas a segunda, a qual quero mencionar, tem as palavras que me confortam: "Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba, segunda o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal." Será o único julgamento que realmente me importa. A todos os outros que me submeteram gratuitamente de forma insistente e arbitrária, ora, que se danem!

9. Tenho medo do que vou sentir falta quando estiver no invisível. Falta de beijo de mulher, do sorriso de um filho, do abraço de um amigo, de ver o dia se dissolver entre as estrelas do anoitecer. Tenho medo dos arrepios dos arrependimentos; de não ter aprendido a tocar um instrumento, de não ter terminado de pintar aquela tela, de não ter dado o ponto final no meu livro... Gostaria de finalizar dizendo que se Deus me propusesse uma segunda chance de viver novamente, ainda sim eu faria um suplicante pedido: Que eu voltasse com esse mesmo velho coração fundido a fogo e ferro pela vida que tive. Com esse coração assim tão cheio de cicatrizes, de avisos escritos em suas paredes sobre as coisas que fiz e foram um desastre, e de outras tantas que fiz e me encheram de muitas alegrias. Com esse coração eu saberia fazer coisas incríveis, que me custaram tanto para aprender. Desviaria-me de conhecidas trilhas que me levaram a becos estreitos e sem luz. Deixaria de abrir dúzias de portas rangentes e ficaria ansioso por abrir outras tantas, que hoje as reconheço como sendo imperdíveis. Eu teria mais cuidado em não amassar os corações que me chegassem ao convívio, antes, porém, saberia acariciá-los com tal zelo, devolvendo-os ao peito de seus donos deliciosamente massageados. Ficaria mais atento a momentos que de tão tão especiais, só acontecem uma vez na vida, e por vezes desperdiçamos esses milagres por estarmos olhando na direção oposta. Sentaria mais vezes no chão para brincar com meus filhos e seria abençoado por eles através dos seus sorrisos de anjos barrocos. Saberia ser cúmplice da mulher amada, amigo, protetor e faria uma parceria de vida para chegarmos juntos em todas as corridas. Saberia fazer amor de um jeito diferente de tudo que já tivesse feito antes, veria meus lençóis como nuvens e me renderia a paz que o verdadeiro amor produz; sem limites, sem regras, sem censuras, sem desencontros, onde tudo acabaria na explosão iluminada de um prolongado orgasmo. Investiria mais em ouvir, em julgar menos, ser mais agradecido, aprenderia a dar uma segunda chance, esquecer as mágoas; buscaria desapegar-me da cegueira da vaidade desperfumada e deixaria mais e mais a vida fazer de mim uma morada divertida. Quem vive dessa maneira, não vê a morte como um fim, mas como uma consagração.

10. Chega, já falei demais...

 
ps.: Esqueci de dizer o epitáfio.




22/04/2014   
a um mês do meu aniversário

  



  




quarta-feira, 12 de março de 2014

NAQUELA NOITE

  FFicção              



    Ficção    



Era só mais uma noite rotineira de setembro de 1952. De súbito uma mão agarra a barra de ferro do portão da casa e empurra, um rangido mal humorado de ferro enferrujado se faz ouvir, como se fosse um toque de corneta de um sentinela imaginário anunciando a chegada de alguém. Agenor chega do trabalho com um pequeno embrulho nas mãos. Quase todas as noite ele trazia algum agrado para Dodôra: um pote de doce de leite, queijo de minas, bombons e de vez em quando ele a surpreendia com suas flores preferidas; margaridas brancas. Flores sempre despertaram o sorriso de Dodôra, as recebia como quem estende as mãos para pegar um filho no colo. Prontamente ela as colocava num vaso de barro cru, que ficava sobre a mesinha junto da porta da sala. Sobre essa mesinha havia um bordado de crochê tecido há muitos anos, na semana em que Dodôra abortara espontaneamente seu terceiro filho. Enquanto ela chorava por essa perda, os fios deslizavam lentamente por entre seus dedos e se misturavam na ponta da agulha a outros fios, e se perguntava; "porque o meu corpo expulsa meus filhos? Por que estou condenada a não ser mãe?" Poucas horas foram suficiente para que ela terminasse o seu crochê arredondado, pequeno, de linha branca. Chegou a pensar que só ficara pronto por não ter sido o seu ventre que o teceu... Esse crochê um dia foi parar sobre a mesinha perto da porta da entrada, um dia colocaram um vaso de barro cru sobre ele e vez por outra Agenor trazia margaridas brancas para Dodôra colocar nesse vaso. Nunca falaram sobre isso, mas havia entre eles uma cumplicidade silenciosa, que existe entre os casais, de que as flores eram para manter viva a lembrança dos filhos que não tiveram. Estavam casados há quarenta anos, um parecia ser a extensão do outro; nos gostos, nos amigos, nas minúcias e intimidades. naquela noite Agenor chega em casa com um embrulho nas mãos envolvido em papel rosa, de superfície áspera, semilustroso, cuidadosamente amarrado com um barbante de algodão fino com várias voltas e no alto havia uma alcinha, confeccionada com o próprio barbante, para carregá-lo. O caminho que Agenor fazia do centro da cidade até o Grajaú, na zona norte do Rio de Janeiro, era sempre de bonde, quase sempre sentado no mesmo lugar, em silêncio, com um olhar sereno para a velha paisagem de sempre, com um embrulho balançando no seu colo. Ao entrar pelo portão de ferro de casa, caminha alguns passos sobre pedras chatas e polidas, intercaladas por uma grama alta; fazia semanas que ele prometia cortar, mas esquecia de fazer. Dodôra o espera na hora de sempre, de banho tomado, perfumada de alfazema, com seus cabelos tingidos de castanho claro, demoradamente penteados e presos por uma fita larga de seda. Dodôra não era mais jovem, mas conservava uma sensualidade discreta e meiga de uma mulher madura. Era bonita, tinha um jeito elegante de falar baixo e mansamente; parecia sorrir com as palavras. Seus olhos eram castanhos, corpo magro e um pouco mais baixa que Agenor. Dodôra gostava da maneira com que Agenor olhava para seus cabelos e do ar de aprovação que fazia quando chegava em casa. Ela se sentia querida e amada. Naquela noite Agenor, como de costume, entra e beija Dodôra levemente nos lábios e num tom de voz de alguém que declara algo importante, diz: “Meu bem, eu trouxe tâmaras secas! Ele nunca deixava que o embrulho em suas mãos fosse um segredo desfeito apenas pelos nós que selava o embrulho. Ele tinha que contar antes... Dodôra cobre um riso com os dedos. Agenor pergunta de maneira formal, dando peso as palavras: “O que foi? Tâmaras a fazem rir?...” Ela responde: “Não, meu bem, não estou rindo por causa das tâmaras, você se esqueceu de tirar o chapéu de novo...” Agenor faz um ar severo, contém seu constrangimento, coloca o embrulho suavemente sobre a mesa da sala e com as duas mãos retira o chapéu de feltro marrom escuro da cabeça. Vai até a entrada da sala e o pendura num dos ganchos junto da porta, onde um outro chapéu sonolento descansa e o observa em silêncio, ao lado de um guarda-chuva seco e adormecido. Ele volta com um olhar sério, pensativo, quase triste... Dodôra repara na reação do marido, mas fala animada: “Fiz canja com batatas e cenouras, meu bem, está do jeitinho que você gosta. Vai se preparar para o jantar, vou terminar de colocar a mesa...” Como se atendesse a uma ordem, ele sai para o quarto e Dodôra segue para a cozinha. Meia hora

depois os dois estão sentados à mesa. Uma música suave do Pixinguinha toca no rádio num dos canto da sala. Agenor está compenetrado, repetidas vezes faz o mesmo movimento de molhar a torrada com manteiga na canja, leva-la à boca, acompanhada em seguida de uma colherada de canja. Dodôra quebra o silêncio e pergunta: “O que foi, meu amor, algum problema na editora?” Agenor é revisor, há anos trabalha na Editora Letra, na Rua da Carioca. Ele não desvia o olhar do prato enquanto responde severo: “Ademar veio conversar comigo, ouviu alguma coisa ontem à tarde, estão querendo me dispensar...” Dodôra reage apertando os lábios, mais por não saber o que dizer. Ela sabia que esse dia chegaria e que seria muito difícil para ele. Agenor suspira fundo, deixa a colher apoiada dentro do prato, repousa as mãos sobre a mesa, e com uma voz determinada diz: “Eu tenho um filho de 30 anos!” Dodôra desvia o olhar para o lado como se tentasse ler no ar as palavras que havia escutado. Confusa e incrédula, pergunta como se não tivesse ouvido direito: “Você tem o quê?” Agenor repete a mesma frase num tom mais baixo: “Eu tenho um filho de 30 anos!” Ele não estaria brincando, pensou Dodôra naqueles poucos instantes que se passaram enquanto o som da voz de Agenor se desfazia no ar. Não sobre esse assunto, não com aquele olhar, não com aquela voz... Num instante diversas lembranças vieram à sua memória, como os pedidos de Agenor para que o ajudasse a escolher presentes para serem dados em aniversários e natais, ao filho de um amigo sem rosto que nunca conheceu. Com o tempo, esses presentes foram crescendo com a idade desse menino. Uma vez, há muitos anos, Dodôra viu seu marido se despedir de um adolescente com um abraço, antes dele subir num bonde e partir. Dodôra apressou-se a atravessar a rua e alcançar seu marido. Demonstrando surpresa, perguntou: “Quem era o rapaz com quem você acabou de se despedir?”. Agenor limitou-se a dizer que não sabia sobre quem ela falava e desconversou. Outra vez Agenor chegou em casa radiante porque o filho do seu amigo entrara na faculdade  de engenharia. Dodôra chegou a pensar que esse apadrinhamento por aquele rapaz poderia ser uma reação espontânea, paternal, de um filho que ele nunca teve. De um filho que eles dois nunca tiveram... Esse pensamento final a despertou, tirou da letargia, fez sangrar novamente uma frustração doída, sentiu uma raiva crescente no peito e sua respiração acelerava, pois, afinal, agora sabia que ela sim nunca tivera um filho, já o seu marido, apresentava naquela noite seu filho de 30 anos. Dodôra encara Agenor de olhos fixos, cerra os pulsos e diz uma frase curta com os lábios trêmulos: “Seu filho da puta!” Agenor esbugalha os olhos, nunca tinha visto antes sua mulher dizer semelhante coisa: “Que isso mulher! Como pode falar assim?" Com o mesmo olhar duro e direto, ela continua: “Como posso falar assim? Que merda de notícia é essa? Já que eu não consegui lhe dar um filho, tratou de se virar sozinho... Seu desgraçado!" Agenor se apressa em falar: “Meu bem, deixa eu falar...” Dodora apontando seu dedo em riste, atropela sua fala dizendo: “Você acha que tem alguma coisa pra me dizer que justifique isso? E se eu estivesse agora te contando que tive um filho bastardo, você iria querer ouvir minhas explicações?” Agenor mantem a boca aberta, mas sem som, seu rosto é de espanto. Abaixa os olhos e parece assistir a cenas do passado, acontecidas há muitos anos. “Você... tem toda razão, não há o que explicar, é um fato terrível para se contar assim, de repente. Sei que estou errado... Quando estávamos aos dez anos de casados tivemos uma fase ruim, amarga, exatamente por não termos tido nosso filho, um sequer... Estávamos desgastados e entristecidos. Foi quando tive um envolvimento com uma colega de trabalho, ela se chamava Lolita...” Dodôra aperta os olhos como se sentisse uma dor aguda e inesperada: “Não diga o nome dessa mulher na minha casa, me respeite!..." Agenor junta as mãos em gesto de súplica: "Meu bem, ouça... não significou nada para mim, não foi especial... foi um acidente, uma cilada do destino..." Dodôra o interrompe com um movimento vigoroso da mão: “Só falta você me dizer que acidentalmente se deitou com essa mulher, que acidentalmente tiveram um filho, que você é um bobo inocente, um marionete do destino... Acha que vou engolir uma história dessa? Você acha que eu sou uma mulher estúpida? Eu preferia ouvir você dizer que foi algo muito especial - fala com ar de desprezo - ao menos essa dor que estou sentindo teria um motivo; algo que me ajudasse a entender porque você fez isso comigo! O preço por me trair deveria ser muito alto. Deveria valer a pena correr o risco de jogar nosso casamento no lixo... Você tinha que provar que era o macho reprodutor e eu a mulher estéril... Quantas outras mentiras você me contou nesses anos, Agenor? Não sei mais com quem estou casada. Estou muito decepcionada com você!” Agenor está abatido e fala como se estivesse sozinho na sala olhando para a sopa fria: “Ela nem era bonita, apenas conversávamos... Depois eu pegava meu bonde e vinha para casa. No dia seguinte ao que você abortou nosso terceiro filho eu desabei, acabei entrando num bar e bebi muito. Ela me viu e me levou para sua casa, me abraçou e disse que não era minha culpa; conversamos, nos beijamos e acabei fazendo uma bobagem... Naquela noite, quando cheguei em casa, não te achei me esperando, a casa estava fria, tudo apagado, fui te encontrar na penumbra do nosso quarto, sentada na beira da cama chorando, eu fiquei arrasado... Senti uma enorme culpa e arrependimento. Depois disso nunca mais tive nada com ela, até que no mês seguinte ela veio me contar que estava grávida. Meu Deus, grávida? Fiquei sem saber o que fazer... Ela quis abortar, mas eu não deixei. Confesso que a ideia de ter um filho me contagiava... Eu não poderia deixar que matassem minha última chance de ser pai. Era um menino, ele nasceu numa maternidade do município, eu nem apareci no dia, fiquei com medo... Ela registrou nosso filho sem o nome do pai... Meu Deus! Não é uma estória bonita para se contar... Com o tempo fui me aproximando dele, acompanhei a sua vida, a escola, dei a melhor assistência que pude... Hoje ele está com 30 anos, formado, tem um bom emprego e está noivo. Quem sabe amanhã serei avô... A mãe dele morreu há alguns anos e com isso ele se chegou mais a mim... Só me resta pedir o seu perdão." Dodôra procura se acalmar, vê seu marido completamente abatido, em lágrimas, arrasado, desfazendo-se à sua frente. Então ela pergunta do jeito mais calmo possível: “Por que só agora, depois de 30 anos, você resolveu me contar tudo isso? Porque não me deixou morrer sem saber dessa história?" Agenor responde sem olhar para Dodôra: “Eu fui ao médico na semana passada e voltei hoje novamente...” Dodôra fala disfarçando sua preocupação: “Você foi ao dr. Anselmo? Por quê? Você não me disse que estava sentindo alguma coisa... O que você tem?” Agenor respira fundo antes de responder: “Estou no início de uma doença degenerativa e incurável chamada Alzheimer. Dr. Anselmo disse que não há o que fazer, ela é progressiva: terei momentos de irritabilidade, alterações de humor, falhas na linguagem, confusão mental e finalmente a perda da memória. É uma questão de tempo... Tomei coragem para te contar hoje porque tenho medo de não conseguir me lembrar para contar amanhã. Passei esses anos carregando esse segredo comigo, esse peso, essa angústia de não poder dividir com você esse filho. Tive medo e vergonha. Ele é um rapaz muito bom, não tem culpa de nada e sabe tudo sobre você, chegou a dizer algumas vezes que queria conhece-la, eu é que não sabia como fazer... Em poucos anos poderei estar num grau de debilidade tão avançado que não me lembrarei do meu filho e nem mesmo de você. É como estar morto em vida." Dodôra também está muito abatida, tem seu olhar vago, procura encontrar o equilíbrio e desabafa: "Se você desabou por eu ter abortado o nosso terceiro filho, como acha que eu me senti? Sua dor foi maior do que a minha? Foi de mim que o sangue escorreu pelas pernas, foi parte minha que morreu naquele dia, carne da minha carne... mas eu não prevariquei, não traí você, nem fui buscar consolo para a minha dor na cama de outro homem". Agenor morde os lábios, desvia seu olhar para o lado, depois para baixo; seus ombros caem, não há mais o que dizer. Ele empurra o prato da sopa, cobre os olhos com as mãos e chora alto. Dodôra, emocionada, se levanta do seu lugar à mesa, se aproxima de Agenor, o abraça afetuosamente e chora também. Agenor olha para Dôdora e diz: "Estou com medo..." Dôdora responde: "Eu também!...Agenor morreu poucos anos depois daquela noite, na primavera de 1957, às vésperas de completar 70 anos. No funeral estavam sua esposa, seu filho André, sua nora e seus netos, Juliana de 4 anos e Guilherme de 2 anos. Ao contrário do que Dodôra pensava, que com a morte do seu marido iria ficar sozinha, a revelação do seu conturbado passado transformou-se em sua família no presente; um filho, uma nora e dois netos.
São as flores do pântano, vida que segue...


12-03-2014

          




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rtigos - Saúde e Atualidades


1906-2006 – CEM ANOS DA DOENÇA DE ALZHEIMER


Em 1906 o Dr. Alois Alzheimer descreveu o caso de uma mulher de 55 anos que fora internada por progressiva dificuldade de memória, de linguagem, desorientação e delírio de ciúme em relação ao marido. Após três anos a paciente faleceu e, examinando seu cérebro, o Dr. Alzheimer descreveu alterações muito características, que ficaram conhecidas como placas senis e emaranhados neurofibrilares.

O caso foi apresentado em uma reunião da Sociedade Médica do Sudoeste da Alemanha e despertou pouca curiosidade. Nos próximos 60 anos considerou-se a doença de Alzheimer como uma doença rara. É claro que neste período muitas pessoas idosas recebiam diagnóstico de demência, que era atribuída à deficiência de circulação cerebral e para qual se tentava, sem sucesso, medicação ativadora da circulação cerebral. Esta foi a época do auge da noção de esclerose cerebral.

A partir dos anos 60 o processo de envelhecimento da população nos países desenvolvidos acelerou-se, mais casos de demência passaram a ser reconhecidos, e o peso do problema sobre os sistemas de saúde e assistência social tornou-se mais significativo. Estudos de diferentes aspectos das demências se multiplicaram. Necrópsias sistemáticas rapidamente mostraram que a maior parte dos idosos falecidos com demência, apresentava as mesmas alterações da supostamente rara doença descrita no início do século XX.

Com a real dimensão do problema sendo reconhecida, a expressão “epidemia silenciosa” foi cunhada, nos anos 70. Ao final dos anos 70 verificou-se que, na doença de Alzheimer, há uma significativa redução na disponibilidade de um neurotransmissor chamado acetilcolina, que está envolvido nos processos de aprendizado e memória e cuja deficiência pode explicar parte dos sintomas da doença.



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O PRIMO DE REBECA

Baseado Em Fatos Reais



Era fim de uma tarde de domingo, fui até a varanda ver o dia se pôr, quem sabe teria uma Lua para enfeitar o céu ou me refrescaria com as brisas desprezadas pelo mar. Mal toquei os pés do lado de fora e o telefone tocou insistente, surdo aos meus avisos de que já estava indo atender... Dei um "alô" pobre, quase aborrecido, e escutei a voz de Rebeca do outro lado da linha; diferente, doída, e disse: “Meu primo acaba de falecer...” Minha boca se comprimiu e minhas sobrancelhas se apertaram por puro instinto. “Mais que merda, (pensei na hora) logo num domingo à noite...” Sei que a morte é tão inevitável quanto imprevista, mas ao menos deveria acontecer só durante a semana. Tenho muita má vontade com a morte, com a minha, principalmente... Sempre reajo da mesma forma quando sei da morte de alguém próximo: nos primeiros dois segundos sou tomado por um espanto incrédulo, como se me contassem uma mentira absurda. Nos segundos seguintes sinto uma inesperada aceitação dessa morte, acompanhada dos meus ombros caídos e de uma sensação de vazio irreparável; um sentimento renovado e inconfessável de medo de morrer vem me lembrar que ela é real e que ronda à minha volta. Por fim, no segundo final, sinto uma pitada de consolo ao ver que ainda dessa vez, não sou eu o falecido. Lembro de ter dito alguma coisa como: "Sinto muito, meu bem... Era casado? Tinha filhos?" Então disse que me vestiria e iria ao seu encontro, ela estava na casa do seu primo com a viúva, um dos filhos e alguns amigos. Minha visita à varanda ficou adiada, ainda que fosse domingo à noite, eu me sentia numa segunda a tarde abafada... Fiquei atrapalhado, não sabia exatamente o que fazer, não sabia se iria de bermuda e camiseta, afinal era noite de domingo, "claro que iriam entender..." pensei... Resolvi tomar um banho rápido e durante o banho acabei me barbeando. Enquanto me barbeava pensava na roupa que iria usar, se poria ou não perfume, se iria de tênis ou com o sapato preto que uso no trabalho... O motivo de pensar nessas bobagens era porque eu não conhecia o cara, infelizmente não tinha pelo que chorar por ele; não tivemos nossos momentos, não fomos em nossos aniversários, nunca nos sentamos à mesa para uma refeição, não bebemos juntos ou contamos piadas um para o outro. Não tivemos a oportunidade de envelhecermos juntos. Ele era, para mim, o mais absoluto estranho e minha única referência era dele ser o primo de RebecaAo chegar no endereço que rabiscara no verso de uma nota de compra da padaria, desci do carro e seguia em direção ao interfone do prédio quando de súbito, vi se aproximar um casal com uma mocinha. A menina enfiou decidida a chave no portão e entrou seguida pelo casal e por mim mesmo. Eles estavam em silêncio, seus rostos tinham desenhos pontiagudos e a pressa no caminhar me fez desconfiar que eram conhecidos do morto. Seguimos até o elevador em movimentos que pareciam ensaiados, dobrando paredes e cruzando corredores. O homem deve ter chegado na mesma conclusão do que eu, pois, inesperadamente, retardou um passo, virou-se para mim e disse num tom de confessionário: “É a filha dele e ela não sabe que ele morreu...” “Meu Deus!” Foi tudo que pude pensar na hora... Há menos de uma hora eu estava indo até a varanda ver qualquer coisa dessa noite de domingo e agora tenho o segredo da morte de um pai, estando ao lado da sua filha... Estávamos os dois contrariados; ele não pediu para morrer e eu tampouco de estar ali. Quem de nós é proprietário da sua vida? Quem de nós pode soletrar com autoridade e sem erro, o que vai acontecer daqui uma hora, ou na simples passagem de um minuto? Enquanto o elevador subia mais lento do que o de costume, olhei de canto de olho para ela. Sabia que em poucos instantes estaria chorando, em poucos instantes sua vida seria diferente do que havia conhecido até então. Sou pai de duas mocinhas, tive vontade de abraçá-la como se fosse minha filha, pois eu já estive no seu lugar. Num outro domingo a noite, há alguns anos, minha tia me telefonou e me chamou para ir a sua casa. Achei sua voz estranha, mais humana, menos dura e segura como de costume. Quando lá cheguei a porta se abriu como num susto, nem me lembro de ter tocado a companhia, como se ela estivesse me esperando com a maçaneta nas mãos. Ela não me cumprimentou, apenas disse: “Vamos para sala...” Uma formalidade inesperada me tomou e caminhamos em silêncio. Ela se sentou numa poltrona e eu no sofá à sua frente. Tão logo me acomodei, perguntei: “O que foi tia?” Ela calmamente disse que no dia seguinte precisaríamos sair juntos, tínhamos algo para fazermos pela manhã. Puxei um sorriso de canto de boca por causa dessa sua ideia "fora de hora" e disse que não seria possível, pois no dia seguinte, segunda-feira, eu iria trabalhar. Sem tirar seus olhos dos meus ela disse, mais pausadamente ainda, que eu não iria trabalhar naquela segunda... Não sou tão bobo assim, senti que havia um universos de coisas por detrás dos nossos silêncios. Perguntei: “Tia, aconteceu alguma coisa?” Ela balançou a cabeça dizendo que sim... Meus olhos caminharam pelo seu rosto, comecei a sentir medo das minhas perguntas; hoje sei que saboreei meus últimos instantes de inocência, antes de saber o que ela tinha para me dizer... Então perguntei: “Foi meu pai ou a minha mãe?” A resposta veio em seguida: “Foi seu pai.” Senti como se uma ampola do absurdo estivesse estourado dentro de mim, consigo lembrar até hoje do cheiro daquela emoção... Ainda sim, agradeço a forma seca e objetiva com que tivemos aquela conversa, como é a morte, seca e objetiva. Não há o que negociar mais, nem rever, nem amenizar, não há mais perguntas a fazer, ou perdões a pedir, o fato é que a morte é o fim de um filme sem letreiros, e, dentre todas as coisas da vida, é a mais absoluta ruptura. Não sei descrever a emoção daquela hora, lembro que apoiei meu cotovelo esquerdo no joelho, coloquei o queixo sobre os dedos da mão fechada, abaixei os olhos e pensei: “Eu não tenho mais pai!” Durante anos roubei de meu pai várias oportunidades de receber o meu carinho. Tenho ainda guardado dentro de mim muitos e muitos abraços que não lhe dei, estocados em prateleiras empoeiradas, ainda embrulhados, ainda com etiqueta; abraços que me apertam por dentro e não por fora. Voltei para casa para contar ao meu irmão que também não tinha mais pai. Ele dormia, tinha faculdade pela manhã. Achei melhor deixá-lo em paz. Peguei uma folha de papel e escrevi: Me acorde. Não saia antes de falar comigo!! E colei no espelho do banheiro. Fui para sala, sentei no sofá e chorei abraçado comigo mesmo por quase uma hora e fui dormir. No dia seguinte foi a vez do meu irmão chorar, só que abraçado comigo. Anos depois, numa outra segunda-feira pela manhã, eu estava no Cemitério Municipal de Macaé no enterro do primo de Rebeca. O que me vem à lembrança desse dia é o som dos passos das pessoas que caminhavam comigo para a sepultura; havia pessoas à minha frente, dos lados e atrás. Caminhávamos lentos e compassadamente. Sobre os pés havia cascalhos, pisos irregulares, e a soma do som desses passos, curiosamente, me trouxe algum conforto, porque um enterro consegue ser mais triste se não houver o calor das outras pessoas que vieram se despedir com você. Foi quando senti uma fisgada de lamentação, no meio das costelas, por não tê-lo conhecido melhor. Depois a sequência de sempre: choros contidos, silêncio, desce o caixão, recolhe-se as cordas, choros contidos, mais silêncio, homens sem coração fecham tudo com uma tampa, barulho de pá assentando o cimento, mais choros contidos e mais silêncio... A morte e o nascimento são personagens de um mesmo processo, onde um termina, inicia-se o outro. Morte e vida. Parecem as pontas distantes das asas abertas de um querubim, mas que também se tocam e se respeitam. O Deus em que acredito está presente no choro e no sorriso, está presente no nascimento e na morte. Dono dos processos que criou. Ainda que seja quase impossível entendermos a necessidade da morte, aceitamos com festa e alegria a realidade da vida. Certamente porque nossas impressões baseiam-se numa visão espiritual míope, acreditamos mais no que podemos ver e tocar em detrimento ao infinito de realidades que desconhecemos e que habitam no invisível. Hoje é quarta-feira e faz um mês que ele morreu. Por coincidência, depois do jantar, fui até a varanda e lá estava ela, a Lua, indiferente a todas as mortes, plácida, linda, deslisando entre nuvens como uma folha caída num rio manso. A Lua é apenas uma pedra, estará no mesmo lugar depois que eu morrer, e diante da sua presença, concluí que é disso que é feita a vida, de um dia após o outro, entre Luas indiferentes e distantes. 



15-01-2014