a história a seguir é mera ficção, ok?
- 1ª PARTE -
- 1ª PARTE -
CENTRO DE OPERAÇÕES
13 de novembro de 2012 - 17:51
13 de novembro de 2012 - 17:51
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Gabriel entra esbaforido no centro de operações, está carregado de relatórios; olha para o relógio e seus olhos viram na órbita, sabe que vai chegar atrasado ao Cairo e tem recomendações severas para que isso não aconteça. Ele não quer lembrar da última vez que se atrasou, não agiu a tempo de evitar que o furacão Catrina devastasse Nova Orleans em 2005. "Logo a terra do Jazz, estilo preferido do CHEFE. Que fui fazer!!" Foi o que pensou quando viu as cenas da destruição. Na manhã seguinte, na sala do CHEFE, recebeu "aquela" descompustura... A sala está vazia. Deixa-se cair na poltrona de sua mesa, apreensivo. Pensa com os dedos tamborilando sobre a relação de coisas pendentes, precisa de um milagre. De repente barulho de porta batendo lá dentro, outra porta se abre e surge Mizael correndo em direção à porta de saída. Gabriel estica o pescoço e grita seu nome: “MIZAEEEEL!” A reposta é rápida e curta: “Neeeem pensar...” E some! Silêncio novamente. “E agora?...” Pergunta pra si mesmo. Eis que Miguel entra na sala para pegar seu laptop e Gabriel parte pra cima: "Miguel, preciso muito da sua ajuda..." Miguel levanta os dois braços com as mãos abertas na direção de Gabriel. "Sai pra lá Gabriel, meu turno acaba em poucos minutos, vou relaxar minhas tensões..." Gabriel de braços abertos suplica: "Cara, nem sei que horas vou poder relaxar as minhas! Quebra essa pra mim, vai, tenho que estar as 6 no Cairo. Lembra do Catrina? Vamos lá, cara, somos amigos, quebra essa pra mim. Fico te devendo essa!!" Miguel não perde o ritmo, vai juntando suas coisas sobre sua mesa enquanto responde para a Gabriel. "Gabriel, você tem que se organizar melhor, cara! Fica aceitando tudo o que é tarefa, você precisa ter uma visão mais realista do tempo. Foi ao treinamento de Tempos e Movimentos da semana passada?? Não te vi lá... Só o CHEFE consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo, nós não, entende??" Gabriel fica desolado, seus olhos se dissolvem no ar e perdem o brilho. Miguel segue resoluto em direção a porta, mas na medida em que vai se aproximando, seus passos perdem o vigor. Para por uns instantes encostando-se no alisar da porta; sente Gabriel às suas costas desolado. Miguel faz uma careta de contrariado, da um giro nos pés, e volta dizendo: "Tá bom... tá bom... Eu quebro essa pra você, mas você nunca mais vai faltar aos treinamentos e ainda vai repor o tempo que eu perder aqui, entendeu?" "Combinadíssimo, irmão, valeu muito. São apenas duzentos e quarenta e oito contatos, o primeiro da lista é esse aqui, Ricardo Cacilias." Miguel pergunta enquanto passa os olhos na lista de contatos: "Ué, não está em ordem alfabética?" Responde Gabriel já com a mochila nas costas e mais aliviado: "Ah Miguel, você sabe como é aquele pessoal do cadastro... Eles vivem com a testa suja de sorvete. Valeu, fui..." E Gabriel sai pela porta literalmente voando, estava muito atrasado. A repartição fica vazia e em profundo silêncio, uma lâmpada fluorescente no fundo da sala pisca intermitentemente, o que faz aumentar a sensação de que o Universo está vazio. Miguel se joga na cadeira da mesa de Gabriel, apoia seu laptop e levanta a sobrancelha. Estica o braço e puxa a lista de contatos e o telefone; afunda na cadeira desanimado, sabia que aquilo iria demorar...
- 2ª PARTE -
RIO DE JANEIRO
RIO DE JANEIRO

agosto?" Na resposta já havia alteração no tom de voz de Miguel... "Não!!! Foi dia 10 de agosto. Você saiu do trabalho para almoçar, estava indo para sua casa fazer um lanche, lembra? Ao passar ao lado do viaduto, com a sua lambreta, você viu um mendigo embrulhado em farrapos com a cabeça apoiada numa bolsa velha. Surgiu no seu coração, de forma espontânea, um sentimento sincero de preocupação, de compromisso, de piedade. Então você teve a ideia de preparar dois sanduíches "especiais", um para você e outro para o cara do viaduto, e foi o que fez... Bom... É isso. Parabéns! Por favor, preciso que você diga que entendeu para que eu desligue. Faz parte dos procedimentos para que eu inicie um novo contato. Tudo bem?" Então volta a lembrança de Ricardo os detalhes daquele dia com o cara do viaduto... "Sim. Agora lembro! Lembro de ter pensado em fazer o sanduíche na hora que vi o cara. Fiquei com aquela ideia na cabeça e acabei fazendo mesmo. Lembro de ter parado a lambreta um pouco mais afastado e levei para ele o sanduíche e a coca gelada que eu tinha. Lembro de ter me sentido mal com o cheiro azedo do lugar em que ele estava deitado. Lembro de ter hesitado em entregar o lanche, um certo temor quanto a reação dele... ser assaltado... Sei lá... Cara, tá brincando que ganhei um terreno no céu por causa disso? E como você ficou sabendo? Pooorra, ninguém vai acreditar quando eu contar..." Miguel aperta os olhos dentro do rosto, não tem muita paciência com os Homens, sua função é mais técnica, da área de planejamento, não tem muito contato com a raça humana. Respira fundo e tenta responder com paciência: "Ricardo, quando eu desligar você não terá a mínima recordação sobre essa conversa. Então não se empolgue achando que vai contar sobre o nosso papo a alguém. Você NÃO ganhou um terreno no céu, você ganhou uma cota. Você precisa colecionar atitudes para integralizar o terreno. Essa é a primeira cota, aliás, você começou bem tarde, está com 53 anos, neste ritmo, no seu lugar, eu não teria tanta esperança de ser proprietário de um terreno no céu... Nós ficamos sabendo do que aconteceu porque o sr. João morreu naquela noite do dia que você levou o lanche, ele chegou aqui falando de você e isso chamou a atenção das recepcionistas. Elas nos passaram o relatório
com seu nome e resolvemos incluí-lo no plano"SUA CASA, SUA VIDA NO CÉU." Ricardo toma um susto ao ouvir de Miguel que o velho havia morrido naquele mesmo dia: "Morreu? Cara, será que o hambúrguer estava estragado? Eu não sabia que ele estava doente, eu... eu podia ter conversado alguma coisa, sei lá... Ele cheirava tão mal, não quis me aproximar muito. Eu estava com pressa, eu tinha hora para voltar... Eu lamento muito!" "Calma Ricardo, todo dia e a todo instante alguém morre pelos mais diversos motivos. Morrer faz parte da vida. O sr. João tinha um grave problema gastrointestinal" "Que problema era esse?" "Câncer no estômago. Ele se alimentava de maneira precária e de preferência alimentos líquidos. Ele evitava ao máximo alimentos sólidos, provocavam dor e desconforto em seu estômago." "Então ele... não comeu o sanduíche?" "Não! Ele deu o alimento a outro mendigo que apareceu depois. Seu gesto trouxe conforto a um e matou a fome de outro. Essa é a doce magia do “bem”, é como uma pedrada na água, as ondas se expandem em todas as direções até você perder de vista. Você já percebeu quando a onda do mar bate num rochedo? Ela retorna ao mar transbordando de espumas. Quando você faz o bem, esse bem volta para você como espuma de uma onda que transbordou de você mesmo. O sr. João morreu naquela noite como o apagar de uma chama de vela, sozinho, mas amparado pelos nossos agentes de campo. Na verdade o que o matou, não foi o câncer, ele morreu foi de abandono, morreu de rejeição, morreu de invisibilidade... Miguel parece se esquecer por um instante que estava trabalhando, e se expressa com um desabafo, quase falando para si mesmo: "Acho curioso os Homens duvidarem da minha existência, me acharem um ser mitológico, com penas nas costas e cara de bobo, a imagem da fantasia... As vezes sou eu quem quase duvida da existência dessa Raça Humana. Como pode existir pessoas capazes de deixar o seu semelhante morrer aos seus pés, fingindo-se de cegos, de surdos, de mudos e de sonsos? Eu não entendo como pode um ser dotado de alma, soprada pela boca de Deus, ver a degradação diante da sua porta, na rua em que caminha e não esboçar qualquer reação além da indiferença. Existimos tanto quanto o Homem, e de ambos os lados há descrença de um na existência do outro." "Miguel, onde ele está? Onde está o corpo do sr. João?" A pergunta desperta Miguel de suas reflexões. "Onde ele está? Levou dois dias para descobrirem que ele havia morrido. O serviço público da sua cidade cuidou disso; antes, mais importante do que saber onde o corpo foi colocado, é ter a certeza de que a vida é mais do que carne e osso. Assim como a eletricidade faz a lâmpada acender, é o espirito quem vivifica o corpo e este não tem dia em que se acabe. A lâmpada sem a eletricidade é apenas um vidro transparente, um corpo sem espírito é apenas carne apodrecendo. Você quer mesmo saber onde o sr. João está? Ele está aqui conosco! Feliz, sem câncer, fazendo parte do nosso corpo... Bom, preciso desligar,
ainda tenho outras 247 ligações para fazer..." Ricardo ainda avaliava o peso das palavras de Miguel, tinha seus cabelos molhados pela chuva, as buzinas o cercava como trombetas do apocalipse, os escapamentos despejavam seus dejetos; mas isso não alcançava Ricardo. Ele parecia estar dentro de uma bolha, como se o tempo estivesse suspenso para que nada perturbasse a sua conversa especial. E diz: "Puxa, que pena! Estava bom o nosso papo... Vamos nos falar de novo um dia?" "Claro! Faça por merecer uma ligação do céu. Quem abre o canal de comunicação é você. Bem, na verdade quem virá a te ligar é esse meu amigo, o Gabriel. Eu só o estou substituindo hoje. Ele é um cara legal, um entusiasta do Homem, quem acredita mais em vocês do que eu. Deixa eu te dizer uma coisa, Ricardo: todos nós e tudo mais estamos interligados. A natureza, anjos, santos, Homens e demônios, se aceitar isso, você começará a entender que o Universo se move por um motivo. Cada dia que nasce, as flores que se abrem, o nascimento de um ser vivo, o calor, o frio, as estações, os anos, os séculos... O Universo se move por um motivo. Interaja, absorva, sinta, encontre a razão desse movimento..." "Eu nunca vou esquecer essa nossa conversa, Miguel." "Sei que não, mas assim que eu desligar você não terá consciência alguma do que conversamos, mas nossa conversa ficará guardada no seu íntimo até uma próxima ligação. Entende o toque? Me faça te ligar mais... Fique na paz, Homem, acelere suas boas ações, você está muito lento para chegar ao entendimento de que somos membros de um só corpo... Adeus, Ricardo!!" A chuva cai forte, Ricardo se vê parado no meio do trânsito, gritando com o celular: "Alô, quem é?... Alô, quem é?..." Mas não há resposta do outro lado da linha. Ricardo guarda o telefone no bolso da calça contrariado por ter sido interrompido no seu retorno para casa. Antes de sair, não entende bem o motivo, mas dá um sorriso. Sobe na lambreta e acelera, vai continuar a vencer o trânsito caótico que encontra a cada dia.
Existiu de fato um cara envolto a farrapos e deitado debaixo do viaduto Pedro Álvares, aqui em Botafogo. Quando fui buscar as imagens deste viaduto no GOOGLE MAPAS para ilustrar esse texto, tomei um susto ao reencontrá-lo deitado sobre os mesmos farrapos em que o avistei meses antes. A realidade é a arte-final da vida, é sempre mais impactante do que a ficção, porque é viva! Sua cor é intensa, seu cheiro é forte, é sedutora, justamente por ser real, palpável e atingível. A realidade cria compromissos que até podemos ignorar, mas não nos isenta; desfralda-nos, desvirgina-nos, ainda que neguemos, não nos inocenta. Não há como enganar a consciência porque ela é soberana, ela é inegociável; foi feita assim por Deus para surtir seus efeitos. Eu não sei o nome do cara do viaduto e nem se morreu na noite que nos conhecemos, mas ele existiu, está lá fora em algum lugar. Era fim de mês, eu estava com pouco dinheiro e resolvi comer em casa. Entre meu trabalho e minha casa, de lambreta, levava uns 5 minutos. Ao passar ao lado do viaduto vi o cara deitado no chão, não sei porque isso chamou a minha atenção, já que vivemos numa cidade cheia de mendigos. Quem sabe porque eu estava com fome e isso me fez pensar que certamente ele também estaria? Não sei... Se eu estava com pouco dinheiro, imagina um cara que precisava se abrigar debaixo de um viaduto? Fui pra casa pensando em ajudá-lo de alguma maneira, eu voltaria quase pelo mesmo caminho, mas uma coisa muito estranha aconteceu, comecei a negociar comigo mesmo. Uma parte de mim queria ajudá-lo, mas a outra não. Era como assistir a um debate entre a minha consciência e o meu egoísmo: assim como eu falava dos prós, havia de igual relevância os contras. Fiquei surpreso de ver essa pessoa dentro de mim cheia de opinião própria, tentando me convencer sobre as suas verdades. Afinal, o motivo de tanta discussão era realmente sobre um sanduíche? De onde vinha a minha negação de querer ajudar o cara do viaduto? Lutei contra a minha inércia, contra o conforto do anonimato. Eu procurava rebater as inúmeras justificativas dessa pessoa que me habita, de que a culpa era da sociedade, do Estado, do poder público, do século 21... De que não havia sido eu quem inventou a escravidão, a exploração do homem pelo homem, o capitalismo selvagem, os governos corruptos que temos em todas as esferas. De que não havia sido eu quem tramou o fim da monarquia e ajudou a fundar a devasta república. Por trás de determinadas portas que fui trancando durante a minha vida, eu ouvia gritos abafados que lembravam sobre a cor branca de Deus e que Jesus tem olhos pintados de azul em todos os quadros da igreja... e blá, blá, blá. Não!... Não!... Não aceitei, dessa vez, ser "pelego" do conforto, cheguei a rir da minha mediocridade ao ver que pensamentos como esses de alguma forma aparecem nos portões da minha consciência e dão o seu alô, sabem se fazer ouvir. Deu para ver como estou distante de ter um bom terreno no céu... Isso me assusta! Não pelo terreno no céu com vista para os planetas, porque isso é ficção. O que me assusta é ver o dedo da consciência apontar o rosto da realidade para que eu encare seus olhos, e me faça revelar minhas atitudes. Como cristão digo que não dá para enganar a Deus, ou você está no jogo ou fora dele. Ainda que não façamos nada, ao menos que nos sintamos muito envergonhados por não fazê-lo. Pior é fingir que está tudo bem. Esse é o meu inimigo, é quem habita dentro de mim e quer me convencer de que, ao não praticar o mal, não fazer o bem é aceitável, pois as primeiras ações justificam as seguintes. Queria muito colocar a culpa no diabo ou em qual outro nome queiram dar para o mal, pois o mal tem muitos nomes; mas ser confortavelmente indiferente ao meu próximo me coloca como o número um dos piores nomes que quiserem dar à besta. A criatura indiferente sabe se fazer passar por pessoa honesta, pois quando são vistas caminhando ao lado de quem precisa de ajuda, e nada fazem, acharão estar olhando para uma pessoa comum que apenas passa, mas que sabe disfarçar muito bem seu imenso egoísmo. Ainda que não existisse o céu, os anjos, o criador, ainda que eu
fosse um ateu que julgasse ter meus dias terminados com a morte do meu corpo, ainda assim, não é natural ao ser humano ver a mendicância e o abandono do seu semelhante, de um “desistido”, fazer cara de foto e não alterar o seu passo. Definitivamente, isso não é nada natural.

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10-04-2013 |
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