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sexta-feira, 13 de julho de 2012

LADRÃO DE CRIANÇA - PARTE 1



Nossa, que noite fria... Eu estava deitado lendo o livro 1808 de Laurentino Gomes e parei para fazer um café. Quem sabe meus pés esquentariam?!? Voltei ao quarto com o café fumegando; seria a minha única companhia dessa noite, a fumaça do café dançando em volta do meu rosto enquanto esvaziava lentamente a caneca. Procurei o cachimbo, mas sem muita vontade de acendê-lo, desisti. Sentei enfrente ao laptop, estava desligado como se dormisse. Certas coisas dão mais peso a esse meu estado de solidão, ver TV, por exemplo, se estou sozinho não gosto. Com quem vou dividir meu riso, meus comentários e a escolha do canal? A maior prisão é ser dono de seu tempo e de sua vida, pois se não temos com quem gasta-los, de que vale ser rico numa ilha deserta? Tomei outro grande gole de café. Tenho uma mente zelosa, pois para proteger-me dessa companhia chata que sou, ela escolhe uma parede vazia e começa a pintá-la de uma luz meio azulada. Toda vez eu caio nessa... Olho com atenção para essa mancha iluminada e aos poucos vão surgindo rostos, movimentos, depois vem o som e quando percebo estou assistindo algum filme que participei vivendo. Forcei meus olhos e vi, através dessa janela surgida na parede, a mãe da minha filha mais velha me perguntando se eu queria café. Estávamos na rodoviária de Porto Alegre numa manhã de janeiro de 1983. Eu tinha 24 anos. Era a primeira vez que Renata iria para o Rio visitar os avós, meus pais. 
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– Quero sim Tere, vai comprar onde? – Ali. “Ela apontou para uma lanchonete e saiu. Faltavam apenas 20 min para o ônibus partir. Renata estava no meu colo brincando com uma bonequinha de pano que sua avó materna havia feito, tinha apenas dois anos. Era uma ciança muito linda e inteligente apesar de ter o seu peso em timidez. Tere voltou com dois copos de plásticos com café. O “cara da mala” abriu o compartimento de bagagem na lateral do ônibus e os passageiros foram se aproximando. Tere já queria guardar as malas, mas eu, como sempre, cheio de estratagemas disse”:  Não, melhor deixar que coloquem as outras malas primeiro, pois serão as últimas a serem retiradas lá no Rio. Se colocarmos as nossas por fim, ficarão na frente... “Ela sorriu e aceitou minha argumentação. Quando faltavam apenas 5 min do horário de saída do ônibus, colocamos as malas no bagageiro. Renata agora estava deitada em meu ombro dormindo, havíamos acordado muito cedo. Morávamos em Novo Hamburgo distante duas horas de Porto Alegre. Estávamos ansiosos por essa viajem e cada detalhe foi pensado com muito cuidado, com exceção de um. O motorista falou": – Bilhetes... – Aqui. “Entreguei nossas passagens já sentindo aquela excitação de estar começando uma viajem...” – Certidão de nascimento da menina... “Repeti a frase como um papagaio bêbado”: – Certidão de nascimento da menina? – Sim, sem a certidão ela não poderá embarcar. “Minha mão imaginária deu um tapa na minha testa. Eu havia esquecido a certidão. Tentei argumentar, mas o motorista foi taxativo, sem a certidão Renata não entraria naquele ônibus, mas deu uma ideia":  – Depois daquela banca de jornal tem uma sala do juizado de menores, vá lá e peça uma autorização, talvez consiga... “Olhei para Tere e disse”: – Deixa que eu vou, eu resolvo isso. “E pedi ao motorista": – Me espera, por favor... “Ele só levantou os ombros. Saí correndo com a Renata balançando pra lá e para cá... Entrei na sala do juizado abruptamente, estava vazia e tinha um senhor sentado diante de uma máquina de escrever lendo jornal”: – Bom dia, senhor. Eu e minha mulher estávamos embarcando, mas esqueci a certidão de nascimento e o motorista não me deixou entrar com ela. “E olhei para a Renata. O funcionário levantou-se lentamente me olhando sério": – Posso ver seus documentos? “Na pressa havia deixado tudo com a Tere, carteira, dinheiro, passagens...”: – O senhor me desculpe, mas na afobação de chegar até aqui com o ônibus prestes a partir, deixei tudo com minha mulher. “E muito inocentemente disse a ele”: – Eu só preciso de uma autorização do juizado para viajar... “O sujeito apertou um botão debaixo do balcão e em poucos segundos surgiu na porta um policial, um brigadiano como é chamado no sul. Ele tinha uma arma na cintura, devia ter uns dois metros de altura, loiro e cara de oficial nazista.” – O senhor fique calmo, mas tivemos alguns problemas por aqui e estou me cercando de cuidados. Veja, o senhor não pode se identificar e nem a essa criança e quer que eu lhe de um documento, uma autorização para viajar? O senhor faria isso se estivesse na minha posição? “Porra, pensei na hora, ele me pegou! Vi a viajem ir pro 'brejo', me vi ligando para casa dos meus pais dizendo que não iríamos mais. Escutei meus pais dizendo onde eu estava com a cabeça que havia esquecido algo tão óbvio e blá, blá, blá... Bom, mas ter saído de casa e ido morar em outra cidade e em outro estado, me fez descobrir um Ricardo que eu não conhecia enquanto morava com meus pais: o negociador. Foi o que fiz...”: – Como o senhor se chama? – Carlos Affonso.  – Sr. Carlos, por favor, ligue para a companhia de ônibus e pergunte se no ônibus para o Rio das 09:30 consta na lista nossos nomes, Ricardo e Teresinha. Sou eu e a mãe dela. “Cheguei a ficar surpreso, mas ele fez exatamente o que eu havia pedido, e confirmaram nossos nomes na lista. Fiquei mais confiante”: – Então... eu falava a verdade. Agora por favor, olhe para ela, é a minha cara, não vê que é a minha filha? “Seu Carlos olhou direto nos olhos da Renata e disse levantando as sobrancelhas ": – Essa menina parece com a minha neta... “E saiu de trás do balcão, aproximou-se de nós e estendeu as mãos para pegar a Renata no colo. A Renata reagiu de um modo inesperado, deu um pulo para trás e agarrou-se no meu pescoço e gritou": – Papai!!! Seu Carlos sorriu, hoje penso que ele fez um teste e parece que eu passei nele. Ele voltou para sua mesa, tirou uma folha timbrada da primeira gaveta, redigiu um texto e me entregou a folha dizendo”: – Boa viajem e cuide bem dessa menininha... “Saí correndo enquanto dizia”: – Obrigado! Obrigado! Quando cheguei ao terminal 7, onde o ônibus estava estacionado, só havia uma mancha de óleo no chão e mais nada. O ônibus havia partido... E pior, minha mulher havia sumido. Eu estava sem dinheiro, sem documentos, em outra cidade e com a Renata no colo... 


–  CONTINUA  –


Ricardo Cacilias
         12-07-2012




Um comentário:

Ricardo Cacilias disse...

Ah, pai... Adorei o texto! Não lembro deste dia, hehe, mas imagino a sua cara em cada argumentação... Muito engraçado! E a segunda parte da história é ainda melhor.... Vou esperar ansiosa! Beijo!
15 de Julho às 21:42
Renata Lopes Cacilias Dresch