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A eternidade é o
momento que se renova

Nosce te ipsum
Conhece a ti mesmo
γνωθι σεαυτόν
γνωθι σεαυτόν


segunda-feira, 28 de novembro de 2011

UM CORAÇÃO CEGO...





Eu estava na sala passando umas camisas com o rádio ligado, era quase 9hs da manhã; parei por uns instantes o trabalho que estava fazendo no computador. Um som metálico rasgou a fechadura e a porta da sala abriu, era Isaura, o anjo que trabalha aqui em casa. Quando ela me viu com o ferro numa mão e uma camisa na outra, perguntou: ”Está querendo roubar o meu emprego?” Gosto desse humor sarcástico que ela faz as vezes, não evitei o riso e respondi: “Bom dia pra você também Isaura, até que não seria mal um dinheirinho extra... E rimos juntos. Um pensamento inesperado fez os músculos do meu rosto se agruparem novamente e desfez o meu sorriso. Falei num tom pausado e impessoal: "Tem coisas que me provocam o pensamento: passar roupa e correr na esteira da academia, por exemplo. Eu estava trabalhando quando me deu saudade da minha mãe... Ela costumava passar pilhas das nossas roupas com bom humor, cantava as músicas da Dalva de Oliveira, Maysa, Ângela Maria... Ai resolvi matar saudades dela, vim passar algumas camisas" Isaura, no seu silencio discreto de sempre, apenas me olhou com ternura. Ela pendurou a alça da sua bolsa numa cadeira próxima e foi pra cozinha fazer um café pra nós. Há uns anos iniciei um trabalho de reflexão sobre meus valores humanos e espirituais; estava receoso, mas confiante em “destrancar” algumas portas e me conhecer melhor. Na cidade de Delfos, na Grécia antiga, havia um templo dedicado ao deus Apolo e sobre o portal de entrada tinha uma frase atribuída ao ateniense Sócrates que dizia: “Conhece a ti mesmo"*. Não é fácil se despir das carnes que vestimos, caminhar alguns passos à frente e voltar nossos olhos para nós mesmos, para o nosso mais profundo íntimo, onde não existe "máscaras" e nem o "faz de contas". Lembro que no início eu parecia o advogado de mim mesmo, cheio de palavreados a defender meus erros, justificar minhas ações e com uma mão cheia de dedos acabava tentando transferir para os outros a responsabilidade e os motivos dos meus atos. Não é fácil! Conhecer a si mesmo é como navegar por um mar que se aprofunda quanto mais nos afastamos da praia da rotina segura e hipnótica. Fui por muitos anos um arrogante educado, uma pessoa de janela pequena, de conceitos amarrados, de visão embaçada, musculatura do coração atrofiada, algo meio mesquinho, parado no sinal vermelho das descobertas enquanto a gasolina do tempo não era usada para correr na direção do crescimento pessoal e espititual... Muitas vezes crescemos na dor, o rasgo que expõe a semente sob a terra, é dolorido, a golfada de ar nas asas do primeiro voo, é dolorida, nascer dói, crescer dói também... Eu estava na minha terceira camisa, Isaura entrou na sala com uma bandeja e duas xícaras de café; apoiou sobre a mesa e disse: “Hora do descanso, toma um cafezinho...” Sentei na cadeira próxima e ela na outra em frente. Depois de dois goles em silêncio e ter suspirado os vapores do café, eu disse: “Há muitos anos eu trabalhei numa grande empresa mobiliária no Leblon, certa vez um cliente solicitou um projeto para sua sala. Era um rapaz jovem, moreno, magro, educado, bonito, trabalhava como modelo profissional, me lembra um pouco meu filho mais novo hoje... Isaura olhou para dentro da xícara e deu mais um gole de café sem se manifestar. Fechamos o negócio, o projeto foi entregue e montado em sua casa. Três meses depois recebi um recado que esse rapaz havia ligado para a empresa e pedido que eu fosse a sua casa tirar algumas dúvidas, talvez até um complemento desse projeto. O detalhe do recado era que ele havia desenvolvido uma herpes ocular e tinha ficado cego... Cego? Perguntei surpreso para a recepcionista da loja. "Não pode ser! Não tem nem três meses que estive com ele. Estava bem, havia comprado seu apartamento, estava animado, trabalha como modelo... Como assim ficou cego?!" Minha capacidade espremida de entender os movimentos do Universo não me ajudou muito. Senti medo! Medo de contrair a sua doença, medo do "castigo" que um “deus” maldito e ignorante submeteu aquele rapaz gay. Meus preconceitos escreveram longos textos nas páginas da minha razão, que legitimavam minhas covardias... Virei pedra e disse as pessoas em minha volta: Eu não vou! Nem pensar...” Nisso, uma colega do trabalho que estava próxima e ouviu a conversa, disse: “Tudo bem, Ricardo, deixa que eu vou na casa do seu cliente, tiro as dúvidas dele...” Meus olhos se voltaram para ela como a mira de uma arma, sua disposição em ir até lá denunciou minha covardia para mim mesmo. Fui tomado de grande espanto por essa atitude desprendida, mais do que isso, suas palavras caíram sobre mim como um balde d’água gelada cheio de pedras de gelo... e eram pedras grandes! Nossa! Não era seu cliente, não era assunto seu, ninguém iria cobrá-la por não ir; por que isso? E suas palavras ficaram dançando em minha volta: “...Deixa que eu vou!..." Cai em silêncio e me fechei num constrangimento inconfessável. Ela foi e voltou, não contraiu herpes ocular até hoje e isso foi há mais de 15 anos. Hoje, quando me lembro dessa história, ainda sinto vergonha e arrependimento. Se todos em minha volta tivessem ficado de boca fechada, se o habitual descompromisso que temos uns com os outros tivesse ocorrido como sempre, teria ficado tudo "bem"!! Mas essa mulher resolveu reagir como um sal de frutas na água quente e transbordou dizendo: “...Deixa que eu vou...!” Chamou para si a responsabilidade de fazer o que era certo. Nem lembro do seu nome... Isaura, eu queria pedir perdão aquele rapaz, mas não faço ideia por onde ele anda. Juro que hoje eu teria ido! Juro que não teria sido tão “babaca” tão simplório. Um coração cego... Colocaria minha mão em seu ombro e lhe diria alguma palavra de incentivo. A ignorância é a semente do medo. Na guerra civil americana, perguntaram a uma senhora dona de casa, voluntária como enfermeira num hospital de campanha, porque ela cuidava tão bem dos inimigos feridos e ela respondeu: "São jovens e estão longe de casa, tem a idade dos meus filhos que também estão na guerra. Espero que alguém esteja fazendo por eles o que estou fazendo pelos filhos deles..." Virei o restante da xícara num só gole. Isaura balançou a cabeça concordando, achei que iria dizer alguma coisa, mas não; levantou-se, colocou a cadeira no lugar, recolheu as xícaras e disse apenas: “Continue!” E foi lá pra dentro... Eu desliguei o ferro, joguei a camisa que estava em minhas mãos sobre as outras empilhadas para passar e fui trabalhar.







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28-11-2011



* "CONHECE A TI MESMO E CONHECERÁS TODO O UNIVERSO E OS DEUSES, PORQUE SE O QUE PROCURAS NÃO ACHARES PRIMEIRO DENTRO DE TI MESMO, NÃO ACHARÁS EM LUGAR ALGUM"









4 comentários:

Anônimo disse...

Ricardo, aquela moça que você nem lembra o nome, ela não estava ali por acaso e sim para fazer a sua parte. Na realidade a função de ir visitar o rapaz cego era dela e não sua, caso contrário ela não estaria ali naquele momento, tanto é que ela se prontificou, e você tenho certeza teria ido caso ela não estivesse ali, quem sabe ela não foi seu anjo.
Cheila Viana

Ricardo Cacilias disse...

A mulher tem a capacidade de ver as coisas de um outro jeito, esbanjando sensibilidade, colorindo os tons cinza e iluminando a concentração de sombras até que elas não mais existam. Sua palavra foi bondosa comigo, um sopro fresco sobre minha culpa, uma porta aberta para meu perdão. Obrigado por ter se dado ao trabalho de ler meu texto e ter me dado a sua opinião. Volte outras vezes, será muito bem vinda. Beijos Cheila.

raimy disse...

Meu querido Ricardo, não devemos ter esse tipo de sentimento em relação à essas coisas, pois erramos e acertamos sempre na vida. Ás vezes, nos culpar não altera nada no passado ou no futuro. É bom sempre ficarmos tranquilos, pois quando a gente menos esperar um anjo aparece para nos salvar.
Raimi Araujo.

Parabéns pelo lindo blog!

Ricardo Cacilias disse...

Puxa, que bom vc ter vindo e me dado o seu comentário. Eu acredito em anjos. Acredito também que é mais fácil ficar parado e deixar o mato crescer do que organizar um lindo jardim. Estou plantando, ainda que tardiamente, mas estou plantando. Tenho muita coisa para consertar e poucos pregos em minha caixa, mas acredito em Deus e terei meu jardim um dia. Quando eu menos esperar, quero ver esse anjo. Um beijo querida amiga. Ricardo