
depois, parei e olhei para trás. Eu tenho um pequeno demônio de desenho animado que, em algumas situações, aparece do nada e pousa no meu ombro esquerdo, mas também tenho um pequeno anjo de desenho animado que chega junto logo após o surgimento do "inimigo" e se assenta no meu ombro direito. Quando olhei para trás o demônio se agarrou na minha orelha e gritou com todas as suas forças, enquanto apontava para o homem caído: ”É golpe, ele está deitado sobre uma faca fingindo estar dormindo. Ele está esperando você se aproximar para te assaltar, ele vai te matar, seu idiota, acorda! Sai daqui agora, corre pra casa. Salve a sua vida!” Quando essas palavras surgiram no meu pensamento, minha respiração ficou mais profunda e acelerada, meus olhos percorriam agitados aquele corpo caído, o vazio da rua que nos cercava e meus medos faziam com que eu mantivesse minhas mãos agarradas ao guidão da moto. Eu me sentia só e amedrontado. Era realmente prudente sair dali o quanto antes. Assim que cheguei a essa conclusão, o anjo disse mansamente: “Homem de pouca fé, você está tendo a segunda chance de fazer alguma coisa por esse homem e vai fugir? Nada é por acaso... Você não está sozinho, maior é aquele que está contigo do que o que está no mundo*...” Essas palavras me balançaram, achei dentro de mim, agachado num canto, um sentimento de dó por aquele homem, parei de olhar para os meus medos e olhei para a criatura indefesa, gelada, desprotegida, vazia e submissa ao caos. Desliguei o motor e desci, por pouco não deixei a moto ligada, cheguei a sentir vergonha de minha tamanha covardia, mas deixei a chave no contato; o anjo tinha razão, sou sim um homem de pouca fé... Me aproximei devagar, mais querendo voltar do que seguir em frente. Quando cheguei junto a ele senti o cheiro do abandono. Ele estava com as calças molhadas e sua urina fazia um caminho de rio até o asfalto. Curiosamente tê-lo visto todo mijado me deu a segurança de que a sua derrota era verdadeira. Sua cabeça encostava no chão e sua boca estava entreaberta com parte da sua língua para fora. As pernas estavam entrelaçadas, como se ele tivesse chegado até ali rolando ribanceira abaixo. Ele não se deitou, ele dormiu onde caiu. Me abaixei e chamei por ele, fiquei com medo de uma reação agressiva, não sabia se estava embriagado ou drogado, mas puro certamente não estava. Eu o chamei várias vezes até que ele abriu os olhos, me olhou confuso e desorientado. E falei: “Amigo, você está deitado no meio da calçada, está longe da marquise, à madrugada vai
ser gelada, fica debaixo da marquise daquela daquela loja...” Perto dele tinha uma garrafa plástica vazia de meio litro da cachaça mais vagabunda que existe no mercado, um saco de supermercado com coisas dentro e uma peça de roupa que não identifiquei qual era espalhados em sua volta. Ele estava absolutamente bêbado e desorientado. Parecia que falávamos línguas diferentes, ele não respondia ao que eu perguntava e eu não entendia o que ele dizia. Perguntei seu nome e ele disse qualquer coisa que não fez sentido para mim, voltou a fechar os olhos, inclinou a cabeça até encostar no chão e voltou a dormir. Lembrei que naquele inverno a prefeitura havia montado duas grandes barracas na Praça Washington Luiz, no Centro de Macaé, eram abrigos para os moradores de rua passarem as noites, um feminino e outro masculino. Comecei a pensar como iria levá-lo para lá de moto naquele estado de embriaguez? Eu tinha dentro do banco duas cordas elásticas, minha primeira ideia foi amarrá-lo ao meu corpo e seguir para lá, aqui em Macaé quase tudo é próximo e em menos de 10 minutos eu chegaria com ele. Mas se ele caísse? Certamente me levaria junto pro chão com a moto em movimento. Fiquei frustrado por ter conseguido superar meus medos, mas que efetivamente não estava conseguindo ajudá-lo. Enquanto eu desembaraçava meus pensamentos, com o demônio de um lado gritando para que eu fugisse e meu anjo do outro pedindo que eu não desistisse do cara, uma luz foi crescendo por trás de mim até ficar bem forte, projetando a sombra de nós dois numa imagem única na calçada. Era o farol de um táxi que parou para descer um passageiro. Enquanto o passageiro se afastava fui falar com o motorista: “Boa noite meu amigo, desculpe-me incomodá-lo, mas eu achei aquele homem caído na calçada, ele está embriagado, é morador de rua. A noite está muito fria. Pensei em levá-lo para o abrigo da prefeitura lá da praça, pode me ajudar nisso? Eu estou de moto, não tenho como fazê-lo...” O motorista disse que não poderia me ajudar porque havia acabado de receber uma chamada de outro passageiro e teria que sair em seguida. Dei outra desanimada. Estava virando o corpo para me afastar quando o motorista falou: “Veja com esse passageiro que desceu do táxi agora, ele é membro de uma igreja, quem sabe ele não te ajuda?” O que eu tinha a perder? Apressei o passo para alcança-lo. Ele estava abrindo um portão branco de garagem. Sempre fico preocupado de alguém achar que é um assalto, ainda mais quando é tarde da noite, já cheguei dizendo que precisava de ajuda e expliquei a situação. Era um homem jovem, missionário de Santa Catarina da Igreja Adventista do Sétimo Dia, igreja, por sinal, que eu não tinha nenhuma afinidade, diferentes dos conceitos que me ensinaram, diferente dos contornos de um Deus que materializei para a minha fé e oração. Preconceitos bobos de uma visão turva em que Deus não pactua... Deus tem um senso de humor muito próprio! O missionário olhou por cima dos meus ombros e viu o homem caído na rua, olhou para minha moto um pouco mais adiante, abaixou os olhos e olhou para as chaves em suas mãos; percebi que estava avaliando a situação e certamente o demônio e o seu anjo também negociavam com ele. Por fim ele disse: “Meu carro está na garagem da igreja, deixa a sua moto aqui dentro e vamos levar o homem no meu carro”. Gritei em pensamentos: “Consegui!” Confesso que não contei ao missionário o detalhe do homem estar com as calças molhadas de xixi, foi sugestão do demônio e essa eu aceitei... Corri animado até o homem caído na calçada e precisei, novamente, chamá-lo várias vezes até que ele voltasse à consciência. Por alguma razão, as circunstâncias alinhavaram uma confiança entre nós, apesar dele não entender muito bem o que eu explicava, ainda sim aceitou, com minha ajuda e do missionário, a se levantar do chão e sentar-se no banco de trás do carro. Voltei até a calçada para juntar seus pertences, um saco plástico de mercado com coisas dentro e uma peça de roupa que não identifiquei qual era; e me sentei na frente ao lado do motorista. No caminho o missionário disse que estava em
Macaé com a família, era de Santa Catarina e seu nome era André. Um trabalhador de Deus! Chegamos muito rápido ao abrigo, subimos na calçada e paramos em frente à unidade móvel administrativa; era uma espécie de contêiner de metal marrom. Enquanto André ajudava o homem a descer do carro, fui falar com o responsável do abrigo e lhe contei a minha história. Ele não aprovou nem desaprovou, não elogiou nem maldisse, tudo isso para ele era apenas rotina. O responsável pelo abrigo entrou na sua casinhola e saiu de lá com uma prancheta na mão. “Pra que a prancheta?” Pensei... Ele se achegou, inclinou sua prancheta e debruçou sua mão com uma bic azul sobre uma folha de papel e perguntou: “Qual é o nome dele, idade, procedência, nome e contato de um parente próximo. Sem esses dados não poderei admiti-lo aqui dentro, faz parte do nosso senso e controle...” O demônio soltou uma gargalhada tão alta e estridente em meus ouvidos, que só os demônios sabem dar. Olhei para o meu anjo e ele tinha o semblante assustado de quem acabara de receber um xeque-mate. Olhei para o responsável do abrigo, olhei para sua prancheta, olhei para André com o braço do homem sobre seus ombros trazendo-o em minha direção, olhei para a porta da tenda, tão próxima e tão longe, olhei para cima e suspirei todo o ar que havia no céu... Tem momentos que somos nós que devemos fazer a roda girar, toda a ajuda de Deus e as complicações do diabo já tomaram o seu tento. Cabe a nós a decisão final do que fazer, porque nem Deus ou o demônio nos obrigam a tomar decisões. As escolhas são nossas! Olhei para o responsável da prefeitura e disse: “O nome dele é Gelson (dei o nome do meu pai). Ele tem 60 anos (idade que meu pai tinha quando morreu). Esse homem é do Rio de Janeiro, capital e de contato pode colocar o meu nome e telefone...” E a tudo que eu dizia, o responsável do abrigo ia anotando. Menti descaradamente... Nessa hora o anjo e o demônio se desfizeram no ar. O administrador foi até a entrada da casinhola e apertou um botão vermelho. De dentro do abrigo saiu um cara tomando café num copo plástico. Quando se aproximou eu perguntei se tinha mais café e ele disse que tinha, mas lá dentro. Pedi, então, que desse o café dele para o Gelson, isso ajudaria a todos nós. Sem hesitar foi o que fez. Gelson tomou o café e pegou de dentro do saco plástico um cigarro e fósforos. Na mesma hora o administrador disse que não poderia levar fósforos para dentro do abrigo de lona. Pedi que o deixasse fumar apenas aquele cigarro, mas que o restante ficaria na casinhola da administração. Ele concordou... Eu mesmo pus fogo naquele toco de cigarro usado, todo amassado, manchado, cara de velho, mas a fumaça subiu serpenteando o ar com delicadeza, pois não importa a natureza do cigarro, todas as fumaças dançam com desenvoltura para o céu. Esperamos pacientemente ele terminar. Quando acabou eu pedi que me entregasse os fósforos e o maço restantes. Ele os colocou em minhas mãos e eu os entreguei ao administrador, que a todo o momento demonstrou experiência no seu trabalho e uma certa caridade. Ele deu um tapa nas costa do homem e disse: “Vai Gelson, vai descansar, tá frio aqui fora...” O homem juntou suas coisas em volta das mãos e seguiu em direção a tenda do abrigo masculino com o ajudante ao seu lado. Apenas levantou e foi embora, não me agradeceu ou ao André, nem olhou para trás. Mas não foi para ouvir agradecimentos que nos movemos, mas pela satisfação de saber que naquela noite ele dormiria numa cama, com um cobertor sobre seu corpo e um travesseiro sob sua cabeça. Me senti confuso ao vê-lo afastar-se, parte de mim dizia que havíamos chegado até onde podíamos, fizemos alguma diferença, mas a outra parte sentia dó, apesar de saber que aquela noite não juntaria o orvalho sobre o seu corpo e nem o frio em seu coração, me perguntava como seria o seu dia seguinte, e o seguinte, e o seguinte? E me veio no pensamento um versículo: “Basta a cada dia o seu próprio mal...” ** Nunca mais vi Gelson e André e o Exército de Formigas continua em marcha. Não é fácil ser bom e caridoso, fácil é apenas repetir as palavras do Santo Livro, sem efetivamente adotar uma atitude de ação do que foi lido. Fácil é conviver com os necessitados como se fossem invisíveis e sentir-se inocente por não ter sido "eu" que os coloquei naquela condição. Fácil é deixar que uma voz contrária grite ao meu coração para não me envolver ou fugir das situações de perigo. Fácil é salvar apenas a própria vida... Não sei o que me deu naquele noite, mas acho que todos nós fomos recrutados para ajudar aquele homem: eu, André, o motorista do táxi, o administrador do abrigo... Cada um poderia ter se negado a fazer parte dessa corrente, mas como uma pedra jogada no lago, as ondas foram se expandindo atingindo a todos em favor do Gelson. Procure fazer a sua parte, independente do tamanho, da importância ou da recompensa. Faça alguma diferença em algum momento da vida de alguém. Faça a diferença! Se as vezes eu consigo, certamente você também conseguirá.
Muito obrigado missionário André!