Baseado em fatos reais
Apesar desse jeans desgastados pelos dias que se acumulam, amo estar em cima de uma moto. Os anos não apagam as emoções, apenas ordenam suas importâncias. Tenho uma PCX automática de 150cc da Honda, uma amiga e parceira do dia-a-dia. Perdoem-me os puristas por chamar uma máquina de amiga, mas temos um casamento perfeito, nos entendemos muito bem. Três ruas depois do prédio onde moro, aqui em Macaé, vive uma cachorra branca de porte médio, pelo curto, olhos juntos e dentes grandes. Essa “coisa”, se posso me referir
assim, parece um ser do mal vestida de cachorra. Quase sempre ao passar de
moto nessa rua, o meio do asfalto se abre entre raios e enxofres e dele emerge essa fera que passa a correr na minha direção; ofegante e desesperada querendo morder a
minha perna. A cena é dantesca: seus olhos ficam esbugalhados, sua língua desaparece
para dar espaço aos dentes ameaçadores, ela não late, rosna como se abrigasse toda a ira do Talibã em seu coração... Todas às vezes entro em pânico absoluto de ser mordido, medo dela conseguir me alcançar. Nessa hora a minha reação é de fuga transloucada, disparo com a moto, fico branco de pavor,
minhas mãos suam, minha respiração fica ofegante e todo o objetivo da minha existência passa a ser o sucesso dessa fuga desvairada. Essa cachorra me
desequilibra, altera a minha paz mais do que qualquer motorista barbeiro ou uma ultrapassagem
desastrosa, e o pior, eu sinto que depois ela rola pelos cantos rindo as gargalhadas da minha
reação. Na hora só consigo gritar: “Cadela, sua cadela...“ e outras coisas mais que não posso publicar aqui. Uma vezes senti que
minhas mãos deram uma guinada na moto para tentar passar por cima dela, uma reação instintiva a sobrevivência da carne; meu Deus, esse não sou eu... Não é que ela seja uma cachorra ruim, não, claro
que não, é seu corpo que não vale nada. Na hora da disparada, acelero tanto que passo direto pela rua que deveria entrar; depois,
absolutamente ofendido e humilhado, dou a volta lá no fim da rua e refaço meu caminho. Isso aconteceu muitas e muitas vezes. Ela nunca
surgia no mesmo lugar, e o medo de não saber de onde viria o seu ataque só aumentava a
minha ansiedade... Um dia eu estava em casa me preparando para sair, enquanto insultava em voz alta a honra daquela cachorra. Isaura estava na cozinha passando o café e veio falar comigo: "Que foi Ricardo?" Respondi com uma mofa: "Eu odeio uma cachorra que me persegue quando passo por sua rua" Isaura é uma senhorinha muito sábia, experiente e resumiu tudo dizendo: "Ela se alimenta do seu medo, o desequilíbrio que te provoca retorna para ela e a satisfaz. Você precisa quebrar essa ligação, esse ciclo do medo..." Eu estava de costas fechando a mochila e suas palavras fizeram muito sentido para mim; como não pensei nisso antes? Ao virar-me para Isaura, ela já estava na cozinha afogando uma xícara com café quente... Então resolvi enfrentar meus medos. Desci a garagem e ao sentar na moto, enquanto o portão se abria, ao invés
de colocar o capacete na cabeça, enfiei no braço esquerdo até o cotovelo; queria ficar de cara limpa para encarar a bicha. Dei
partida e sai repetindo mentalmente passo a passo como iria agir. Três ruas depois pude ver ao longe onde ela estava (porque quando queremos realmente enfrentar
um problema de frente e partir para uma solução, começamos a enxergar melhor os contornos que nos atormentam). Quando a filha do tinhoso me viu levantou as orelhas e puxou um sorriso de lagarto, ficou de pé, veio
andando acelerado na minha direção e quando ia começar a correr, enfiei as mãos no freio e parei de súbito. Ela
tomou um susto pelo imprevisto e parou também. Então olhei dentro dos seus olhos e num tom firme e determinado disse:
“Porque você corre atrás de mim?” Evidente que ela não respondeu, não com palavras, mas com um olhar de incredulidade misturado com espanto. Senti um crescente sentimento de poder me abraçar, pois o meu maior medo das ruas, ao invés de
estar correndo com seus dentes amostra mirando minhas pernas, estava agora parado me observando... Nisso, uma senhora que estava próxima, e acho que era a
dona dela, disse: “Não fique assustado, é apenas uma brincadeira dela...”
Pensei em dizer: “Tá, vou fazer igual com a senhora e quero vê-la rir da
brincadeira...” Mas eu estava no controle da situação, ao invés de estar tenso,
nervoso e preocupado, estava cada vez mais seguro. Apenas respondi: “Eu
não gosto de ser perseguido por uma cachorra querendo me morder.” Então a
senhora disse: “É só dizer o nome dela e ela para na mesma hora...” Essa era a
chave da solução do meu problema, o nome da cachorra. Todo problema tem uma
ponta, como uma costura mal feita, puxe essa ponta e desmanche a costura, ache
a ponta do conflito, concentre sua atenção, divida o problema em partes,
desmanche, desfaça, desconstrua... Então perguntei a senha: “Qual é o nome dela?” E
a senhora disse: “É Branquinha...”. Na mesma hora olhei para a cachorra e disse num
tom firme, mas gentil: “Branquinha, não me cace mais!” A cachorra me encarou, olhou para trás como se alguém a chamasse e se afastou devagar indo se deitar sobre um pano sujo na entrada de uma casa. A senhora achou graça da minha fala e eu acabei
rindo também. Passaram-se
24 horas e vinha eu descendo novamente a rua da ex-cadela assassina, agora etiquetada, qualificada e identificada pelo nome
de Branquinha. Quando ela me viu levantou-se em disparada na
minha direção como uma seta do mal querendo atingir o meu peito; foi quando saiu de dentro do meu capacete uma voz de trovão dizendo: “Branquinhaaaaaaaa!!!” A
cachorra parou como se tivesse batido o focinho numa parede de vidro, olhou
desnorteada para o vazio e depois para mim, piscou duas vezes e voltou a se deitar sobre seu pano sujo. Um sorriso
se apropriou de todo o meu rosto como um filho saudoso que retorna a sua casa depois de uma longa ausência; só consegui pensar numa coisa: “Esse problema está resolvido!” Já passada algumas semanas, quando Branquinha me vê descendo a rua com minha moto, vira o focinho pro lado e me esquece... Enfim, paz!
É preciso saber enfrentar nossos medos e agir como um rio que vence as dificuldades na busca do seu mar, o preço do embate é alto, mais o premio da conquista se chama liberdade.
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03-03-2017 |
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