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CACILIAS ZÉ ANTÔNIO
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Disse certa vez Agostinho Lamet 1:
"Títulos fortes salivam a curiosidade, aguçam a
alma e despertam o interesse a leitura"
Vou contar uma história que aconteceu comigo no início dos anos 70, e lembrando Agostinho Lamet, dei o título de
O BUNDÃO
Primário deve ser uma palavra medieval. Sabe-se lá, antes até. Primário é uma palavra tão antiga, que em livros apócrifos judaicos, conta-se que Noé, sentado sobre uma pilha de tábuas, entrevistava uns carpinteiros para um serviço que ele tinha muito pressa de iniciar e concluir. Conforme as escrituras, a primeira pergunta que Noé fazia aos candidatos a vaga era: "Tem ao menos o primário?" Bem caro leitor, eu fiz o primário nos anos 70. Hoje de tarde, depois do almoço, encostei meus pensamentos nas almofadas do sofá, e por algum motivo não revelado, comecei a lembrar da minha infância, do meu primário. Meus olhos abaixaram para o nada de maneira que eu pudesse ouvir melhor os gritos: "Achei!... Achei!... Ele está aqui!..." Então passei a ver coisas que estavam adormecidas na minha memória, lembrei do Zé Antônio. Eu tinha 12 anos em 1971, há pouco mais de três anos os americanos haviam descido na Lua, ou pelo menos dizem que foram. O governo militar brasileiro propagava o "Milagre Econômico" e anunciava "AME-O OU DEIXE-O". Os americanos despejavam toneladas de bombas incendiárias Nepal sobre criancinhas no Vietnam. No ano anterior fomos tricampeões da copa no México, enquanto milhares de estudantes, pensadores, jornalistas, intelectuais... eram torturados e mortos nos calabouços da ditadura; tudo isso engendrado pela CIA do porco do Nixon, numa mega operação para a América-Latina chamada: Operação Condor. Eu só fui me dar conta disso muitos anos depois... Na minha escola tinha uma figuraça chamada Zé Antônio. Ele não era apenas um pré-adolescente debochado, ele tinha carisma, ele sabia das coisas, sabia caminhar com majestade. Era como se ele tivesse uma plaquinha pendurada no pescoço escrito: Sou foda! Ele só chamava pelo nome os amigos, os outros era "baleia", "rato de cemitério", "olho de coruja", "cara torta"... Eu queria ser o Zé Antônio! Ele tinha segurança, sabia sorrir, não se intimidava... Foi o primeiro cara que vi alguém mandar alguém a merda. Num certo dia eu estava no pátio, na hora do recreio, quando todos nós alunos vimos Zé Antônio se estranhar com uns garotos. Ainda deu para ouvi-lo gritar duas coisas: "Não põe a mão em mim". Vá a merda!" Por causa da presença de monitores no pátio, não houve maior confronto, mas um dos garotos, o maior, disse: "Hoje mesmo você vai levar a maior surra da sua vida." Zé Antônio abriu um sorriso de lagarto e jogou a cabeça pra trás. A coisa não era comigo, mas ainda sim, me caguei todo de medo. No fim da aula, uma hoste de anjos caídos vasculharam todos os cantos da escola atrás de Zé Antônio, e ele simplesmente havia desaparecido no ar... No dia seguinte ficamos sabendo que ninguém conseguiu pegá-lo, e a lenda de cara macho, seguro e sem medo só aumentava. Eu queria ser o Zé Antônio. Na semana seguinte esperei por ele no pátio com duas garrafas de Grapette bem geladinhas nas mãos. Zé Antônio nunca era o primeiro a aparecer no patio e tão pouco o último a sair. Vi quando ele descia a escada em minha direção, e ao chegar bem perto, estendi o braço e disse: "Comprei para você meu amigo. Acho você um cara legal, não tem medo de apanhar?" Ele me olhou com cara de desdem, levantou as sobrancelhas, pegou a garrafa e disse: “Cacilias, mais do que saber o caminho das pedras, há de se conhecer quais possuem limo." Que babaca... Ele devia ter lido isso em algum lugar, mas eu achei aquilo fascinante! Durante semanas ouvindo que era importante saber quais pedras tinham limo e enchendo o bucho dele de Grapette, um dia ele disse baixinho: "Cacilias... vou te contar porque ninguém consegue me pegar depois da aula. Vai ser o nosso segredo!!" Fiquei mudo para não interromper, me sentia diante da "bala" que matou Kennedy! Ele disse olhando para os lados: "Quando falta 5 minutos para acabar a aula, eu saio de fininho da sala com minha pasta e vou para atrás do prédio da escola, junto da torre da caixa d'água..." Interrompi perguntado: "Você sobe na torre?!?!" Seu olhar desaprovador me deixou gelado... e ele continuou... "Claro que não! Na base da torre da caixa d'água tem uma caixa de cimento com uma portinha de venezianas. Nesta caixa fica a bomba da caixa d'água e tem um pequeno espaço onde eu me escondo... Eu entro ali e fico olhando, através das venezianas, os caras me procurarem igual a loucos. Entendeu? Com o tempo eles cansam e vão embora. Então eu saio e vou pra casa". "Hããã..." Foi só o que pude responder. Fiquei com um gostinho de decepção na boca. Eu preferia ter continuado com o mistério, do que saber que ele se escondia na caixa da bomba da torre da água da escola. Ele continuou: "Quanto mais você provoca os cara, mais você se diverte com isso... Porque não tenta um dia?" A serpente deu o seu bom dia na porta do meu paraíso! "Eeeeuuuu!!!!" "Claro! Você conhece o segredo... Ninguém vai te pegar!" A maldita frase fez amor com meus ouvidos. Eu pensava na glória e nas meninas: "Ninguém vai te pegar, gostoso!" "Ninguém vai te pegar, ninja!" "Ninguém vai te pegar, por favor me de um beijo meu amor..." Um sentimento de poder foi me subindo das calças para o meu cérebro, e uma pequena frase surgiu na minha cabeça e eu a repeti baixinho: "Vá a merda!". A árvore da minha inocência estava perdendo suas folhas... Passei a terça, a quarta e a quinta-feira planejando passo a passo meu plano... Litros de adrenalina ocupavam o lugar do sangue em minhas veias... Era sexta-feira, e eu sabia exatamente quanto tempo e quantos passos me separavam da sala de aula até o meu "esconderijo secreto" de venezianas. Eu me sentia poderoso, eu me sentia o Zé Antônio! Por falar em Zé Antônio, mais uma vez ele havia faltado na sexta... Mas quem precisava de Zé Antônio? Tocou a sirene do recreio, fiz questão de ser o último a entrar no pátio. Comecei a andar entre os alunos, me sentia em câmera lenta, parecia que estava de armadura... invencível!!! Cheguei diante de um aluno enorme, conhecido por maluco. Não sei como ele conquistou esse título, mas era hora dele encarar o seu destino. Falei alto para todo mundo em volta ouvir: "Ai, maluco, tô passando, sai da minha frente!!!" Profundo silêncio no ar... Os caras olharam pra mim e pro maluco... Ele perguntou: "O que você disse?" Repeti: "Sai da minha frente..." Maluco deu um passo pro lado e eu passei, meu sorriso desabou quando levei um safanão na nuca... Virei rápido para trás e ele disse entre os dentes: "Hoje te pego na saída..." Ainda que eu soubesse que ele não teria como me pegar, novamente me caguei de medo. O relógio tinha pressa, quando vi faltava 5 minutos para terminar a aula. Peguei minhas coisas e deslisei para a saída da sala. Eu estava eufórico, a íris dilatada, o coração não batia, chaqualhava. Eu repetia baixinho, com um sorriso de garoto na cara, enquanto caminhava acelerado: "Trouxas! Trouxas!..." Quando dobrei o prédio e cheguei na caixa da bomba, seguindo o roteiro que eu havia planejado a semana inteira, olhei para a portinhola de venezianas e notei que havia alguma coisa pendurada nela nela meio dourada... "NÃÃÃOOO!!!" Gritei. Haviam colocado um cadeado na portinhola. O urubu começou a bicar o fundo da minha calça... Troquei rapidinho a palavra trouxas da boca para: "Tô fudido..." Tempos depois vim a saber que as sexta-feiras eles trancavam a caixa d'água para que ela não ficasse aberta nos fins de semana. Esse era o motivo, pelo qual, as sextas Zé Antônio não ia a aula, mas essa ele não me contou... Foi quando entendi que Zé Antônio era a tal pedra com limo! Corri a me encostar na parede mais próxima como um rato que se assusta com o acender da luz. Minha respiração ficou profunda. Fui me arrastando junto a parede, olhando para um lado e para o outro como um ventilador em alta velocidade. Eu só pensava no portão de saída, se conseguisse chegar até lá, ninguém poria mais a mão em mim... De repente escutei gritos: "Achei!... Achei!... Ele está aqui!..." Não demorou a aparecer um, dois, três, quatro... cinco caras com um desagradável brilho nos olhos entre eu e o portão da escola. Cheguei a ouvir minha mãe dizer: "Não vai arranjar briga na escola, meu filho." Pensei: "Não vai dar para correr. Se chorar vai ser pior... Pedir desculpas não vai funcionar..." Fiz a única coisa que poderia fazer naquela hora, encarei. Abri os braços e gritei: "Onde vocês estavam, já estava indo embora..." Ao gritar dessa maneira, dois caras se entreolharam e ficaram parados, acho que minha atitude os fez pensar. Dei um tímido passo em direção ao portão da escola. Na indecisão dos outros, maluco veio para cima de mim. Quando ele chegou perto, me deu uma tapa na minha cabeça de mão aberta, o sino tocou... Caí atordoado, mas levantei rápido. Mais um passo em direção ao portão. Nessa hora vários alunos, que saiam de suas salas para irem embora, estavam próximos. Não reagi ao tapa, mas gritei ainda mais alto: "Trouxe os amiguinhos pra te ajudar, qual é?" Porque eu gritei???? Porque estava funcionando... Até maluco ficou na dúvida do que fazer. E dei mais um passo em direção ao portão. Então maluco me deu um chute na bunda, como se eu fosse uma bola diante do gol, mas apesar da dor, eu nem pisquei. E a cada passo que eu dava, todos caminhavam comigo em direção ao portão. Mais um tapa, mais um chute e eu dava contínuos passos em direção ao portão... Quando já estava bem próximo da rua me virei e disse pausadamente olhando nos olhos do maluco: "Quando você quiser uma briga de verdade, venha sozinho...!" Maluco ficou em silêncio me olhando, me voltei em direção ao portão e fui andando pra casa. Sai da escola pelo portão da frente, com dor na cabeça, com dor na bunda, mas sai pelo portão da frente e ninguém veio atrás de mim. Hoje aos 53 anos tenho uma ideia do que aconteceu naquele dia, eu começava a ser um homenzinho, meu caráter encontrava o seu fermento, eu estava vivendo o meu longo processo de amadurecimento. Eu começava a costurar meu conceito de que um homem só, pode valer por um exército, desde que ele não recue no primeiro tapa, desde que um chute na bunda não o faça cair e chorar junto ao chão. A partir desse dia eu não desejei mais ser o Zé Antônio, aquele bundão! Eu estava começando a gostar de ser eu mesmo. Um dia descobriram Zé Antônio, dentro da caixa da bomba da torre da escola. Dizem que levou uma boa surra, chorou e tudo... Quanto a mim, coloquei minhas barbas de molho e não provoquei mais ninguém, mas de vez em quando alguém lembrava, que naquele dia, eu não havia corrido do maluco, que apanhei, mas fiquei de pé, fiquei de pé. E foi assim que aconteceu, num daqueles dias do início dos anos 70.
Ricardo Cacilias
22-03-2013
(¹) AGOSTINHO LAMET: Mentira esse cara nunca existiu, acabei de cria-lo, mas as pessoas acreditam em qualquer citação desde que a frase faça algum sentido e tenha um sobrenome com ares de importância. E pior, vão mencionar a citação na primeira roda de bate papo, enquanto ainda tem a frase na cabeça. E se alguém perguntar quem é, ainda vão ter a cara de pau de dizer que é um pensador português de origem francesa e todos vã dizer: Huuummmm!!!!...