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γνωθι σεαυτόν
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VIDRO OPACO
BASEADO EM FATOS REAIS

Há uns anos, numa dessas noites sem compromisso, fui até o meu armário e peguei no fundo da prateleira mais alta, uma caixa
de papelão empoeirada, que estava amarrada com um barbante grosso de algodão em forma de cruz. Esta caixa guardava fotos antigas da família; fotos minhas e de meus irmãos em várias épocas, fotos de tios que já
morreram, de lugares que morei, de passeios que a família fez na Quinta da Boa Vista,
na praia do Flamengo, em Petrópolis, fotos de almoços cheios de sorrisos, de comidas que nem me lembro mais o sabor... Haviam fotos de desconhecidos que me seguravam no colo, que me davam a mão, que eu parecia confiar... Quem eram? Fotos de pessoas vestidas com roupas do início dos anos 60: saias plissadas, vestidos floridos, homens penteados com gumex, paletós com a ponto de lenços brancos surgindo por de dentro do bolso. Muitas fotos eram em preto e branco que a ação do tempo as fez amarelar; haviam pessoas amareladas, saindo de seus carros amarelados, sob um céu amarelado e sorrisos também. Quem são vocês pessoas da minha vida? Nesta noite minha mãe estava em minha casa e a maldita doença do alemão Alzheimer ainda não estava tão avançada, ao menos era o que eu pensava. Sai do quarto e fui para o escritório, sentei-me a mesa e coloquei a caixa empoeirada sobre ela, desatei os laços e espalhei diversas fotos em minha frente. Então chamei minha mãe: "Mãe, senta aqui do meu lado um instante..." Ela se aproximou sorrindo, sentou na cadeira ao meu lado e pedi que me dissesse quem eram aquelas pessoas das fotos, seus
nomes, de onde eram, se estavam vivas... Eu acreditava que sua doença era inicial e que o estímulo de ver aquelas rostos iria abrir uma cortina na sua memória, mas infelizmente ela só reconheceu o rosto da minha avó. "Essa é a minha mãe..." Mais de duzentas fotos diante de nós e ela só conseguiu me dizer quem era a sua mãe. Senti uma fisgada no peito, uma sensação ruim de querer limpar um
vidro opaco sem um pano nas mãos, uma sensação de ter dormido no meio do filme e despertado quando os letreiros estavam subindo. Empurrei algumas fotos para o lado disfarçando minha frustração e ansiedade, até que uma foto em especial ficasse bem visível no centro de outras tantas espalhadas em sua volta, e perguntei: “Quem é
esse, mãe?” Ela disse num tom incomodado: "Não sei, meu filho..." Eu insisti: "Olha com calma, mãe. Quem é
esse cara da foto?" Ela me deu a mesma resposta ainda mais incomodada: "Já disse que não sei quem é, meu filho..." Me vi diante de uma porta trancada e sem maçaneta, como se tivesse perdido um bem precioso sem ideia de onde pudesse estar, me senti órfão; minha mãe não reconheceu a foto do meu pai. Fiquei calado sem saber o que dizer e minha mãe foi aos poucos murchando triste; sobre mim uma tempestade relampejava sem fazer som, e embalados por esse silencio olhávamos a foto do meu pai sorrindo abraçado com ela. Dona Malvina se levantou tão devagar que achei que estava se ajeitando na cadeira, foi lá pra dentro em silencio. Coloquei as fotos de volta na caixa empoeirada deixando a foto deles dois por cima das demais, dei o mesmo laço em forma de cruz com o barbante de algodão grosso, como se nunca tivesse sido desfeito e devolvi a caixa para o fundo da prateleira mais alto do armário; e lá permanecem até hoje, como sepultados, os rostos sorridentes e sem nome que um dia fizeram parte da minha vida.
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15-10-2012
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