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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O VELHO DO SUPERMERCADO...

BASEADO EM FATOS REAIS



" A tragédia da velhice consiste não no fato de sermos velhos,
                       mas sim no fato de ainda nos sentirmos jovens "
                                                                                   Oscar Wilde*



Hoje me senti um FISCAL DA PREFEITURA. Você já deve ter visto o cara que fica do lado de fora do buraco, com as chaves do caminhão penduradas na calça, encostado numa placa que diz: 
HOMENS TRABALHANDO
Esse é o FISCAL DA PREFEITURA. No último dia de aula antes das férias de julho, meu filho nº 4, Felipe, recebeu um caderno de questões para serem respondidas durante as férias valendo um ponto qualquer... Faltavam apenas três dias para o recomeço das aulas e ele sequer havia aberto aquele caderno! Quando sua mãe me contou isso pelo telefone, aquele músculo que fica do lado esquerdo do pescoço retraiu-se tanto que puxava a minha cabeça para a esquerda... Peguei as chaves da moto e fui até sua casa para conversarmos amenamente. Para não te fatigar com detalhes, posso dizer que foi uma conversa densa e de sobressaltos estressantes para os dois lados. Ao final sugeri que ele dividisse as tarefas em blocos e estabelecesse metas de produtividade. Que fizesse hoje (quinta-feira) a metade mais difícil das questões e o restante, amanhã pela manhã (sexta-feira), com isso estaria livre sábado e domingo e teria uma segunda-feira feliz como um chafariz. Enfim estabelecemos um acordo e como todo bom adolescente ele queria ter a palavra final e disse:  “Pai, fica frio! Hoje faço a metade e amanhã o resto, tudo bem?” Felipe, quando quer me convencer de alguma coisa, esbugalha os olhos e reforça suas palavras com gestos apaziguadores nas mãos. Sua voz fica igual a de um super-herói quando diz que vai salvar o mundo ou morrer tentando. Eu respondi: “Excelente, filho! Não esperava menos do que isso!” Puxei a cadeira próxima à mesa e me sentei. Ele franziu a testa e me perguntou confuso: “O que você vai fazer?” Respondi como quem diz "bom dia!". “Vou me sentar, não vou ficar em pé te vendo estudar...” Já aflito ele disse: “Você vai ficar aqui?”  Com a cara mais lavada do mundo, respondi: “Claro que vou! Vai lá dentro pegar o caderno!” Não consigo descrever a cara de montanha russa que ele fez; ele foi até o quarto, trouxe os livros e o caderno de exercícios, jogou tudo sobre a mesa, abriu a primeira página e começou a estudar com uma cara acinzentada. Então fiquei ao lado acompanhando tudo como FISCAL DA PREFEITURA. Já passava das oito da noite quando me deu fome. Minha filha Thaís estava estudando em seu quarto e não havia nada previsto para o jantar. Tomei a frente e disse que iria ao supermercado comprar massa, queijo e tomate para fazermos uma pizza. Com a aprovação geral, peguei a moto e fui para o supermercado Mundial, que fica no final da Voluntários da Pátria, aqui em Botafogo. Estou com uma lista imensa de preocupações grudadas nas paredes da minha alma e ainda por cima gripado e com dor de cabeça; ir ao supermercado não era a minha maior diversão, ainda mais numa quinta-feira à noite. Queria apenas que fosse tudo rápido e sem dor. Cheguei ao mercado planejando pegar um carrinho pequeno, é melhor para esquivar das pessoas, pegar o necessário e ir embora. Subi a rampa do mercado e entrei. "Caraca!", pensei, não havia um carrinho pequeno sequer, na verdade não havia carrinho algum, parecia que toda a população de Botafogo havia resolvido chegar ao mesmo tempo naquele lugar, como se todos estivessem enchendo suas despensas na eminência de uma guerra nuclear. Caminhei desolado em frente quando avistei um carrinho com sacolas diante de um velho que deveria ter por perto a idade do meu pai, se estivesse vivo. Dentro desse carrinho havia algumas bolsas amarradas e ele tentava colocá-las sobre os ombros. A competitividade da vida me disciplinou a ter reações de um macho alfa destemido e sem espaço para vacilações. Me aproximei e joguei o capacete dentro do carrinho, um aviso aos humanos em volta que também buscavam um, que ele agora me pertencia. Se eu mantivesse a sequência de atitudes como esta, teria empurrado o velho para o lado com um safanão e saído derrubando as pessoas à minha frente, rosnando como o incrível Hulk; mas não foi o que aconteceu... Sem levantar o rosto ou me olhar nos olhos, o velho manteve a serenidade que a idade lhe presenteia e disse pausadamente: "Calma... ainda tenho sacos de compras dentro do carrinho..." Seu tom de voz impassível e sua indiferença comigo me despertaram como um balde de água e me fez sentir um ridículo. Respirei fundo e disse: "Me desculpe, senhor..." Ele não queria saber da minha história e nem da minha conversa e continuou no mesmo tom de voz: "...se está com tanta pressa, ajude-me a pôr esses sacos em meus ombros..." Ele estava amarrando as sacolas de duas em duas pela alça, planejava coloca-las sobre seus ombros, ficando uma bolsa nas costa e outra no peito. Os ombros são mais fortes do que as mãos e, dessa forma, não machucam tanto quanto machucam penduradas nas mãos. Ao levantar as duas primeiras sacolas, foi quando detive meu olhar sobre ele. Meus olhos acompanharam o contorno de sua cabeça branca, o jeito com que penteava os cabelos para trás com algum tipo de gumex, o que deixou, com o tempo, um tom amarelado em seus cabelos. Observei seu nariz afilado, a camisa de manga curta de cor clara com listras finas colocada para dentro da calça e amarrada com um cinto de couro desgastado. Tinha no bolso uma caneta barata e um par de óculos de plástico preto sem grife. Suas mãos estavam manchadas pelo tempo e uma aliança grossa e sem brilho se destacava entre os dedos. Cheguei a sentir um certo carinho por ele, mas um pensamento inesperado me importunou; ele era pai de alguém, marido de alguma mãe, importante para algumas pessoas. Respeitei o seu tempo, quase disse que o nó não estava bem feito, mas não quis ofendê-lo com minhas observações, sei lá o que deu em mim... Pedi licença para ajudar, discretamente reforcei alguns nós e fui colocando de duas em duas as bolsas em seus ombros. Ele fez um ar de satisfação por conseguir sustentar o peso dessas oito bolsas não muito cheias. Quando sentiu que estava tudo pronto, novamente não me olhou no rosto, apenas disse obrigado com um gesto de cabeça e foi embora. Segui em frente no trajeto oposto, mas não me contive e dei uma olhada para trás a tempo de vê-lo sair porta fora para o anonimato. Bom... resumindo: peguei a massa, o queijo, os tomates, voltei para casa dos meus filhos, preparei a pizza e depois fui para minha casa, do outro lado de Botafogo. Um pouco antes de dormir, já deitado na cama, esfregava meus olhos no teto e lembrei do velho e no que havia acontecido. Queria entender o que aconteceu comigo. Concluí que agi com aquele senhor como gostaria que viessem a agir comigo, quando eu trocasse de lugar com ele, quando chegasse a minha vez de ser o Velho do Supermercado.

30-07-2012







*Oscar Wilde (1854-1900) foi um escritor irlandês, autor da obra “O Retrato de Dorian Gray”, seu único romance, considerada uma das mais importantes obras da literatura inglesa. Escreveu novelas, poesias, contos infantis e dramas. Foi mestre em criar frases irônicas e sarcásticas.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

VIDRO OPACO

BASEADO EM FATOS REAIS




Há uns anos, numa dessas noites sem compromisso, fui até o meu armário e peguei no fundo da prateleira mais alta, uma caixa de papelão empoeirada, que estava amarrada com um barbante grosso de algodão em forma de cruz. Esta caixa guardava fotos antigas da família; fotos minhas e de meus irmãos em várias épocas, fotos de tios que já morreram, de lugares que morei, de passeios que a família fez na Quinta da Boa Vista, na praia do Flamengo, em Petrópolis, fotos de almoços cheios de sorrisos, de comidas que nem me lembro mais o sabor... Haviam fotos de desconhecidos que me seguravam no colo, que me davam a mão, que eu parecia confiar... Quem eram? Fotos de pessoas vestidas com roupas do início dos anos 60: saias plissadas, vestidos floridos, homens penteados com gumex, paletós com a ponto de lenços brancos surgindo por de dentro do bolso. Muitas fotos eram em preto e branco que a ação do tempo as fez amarelar; haviam pessoas amareladas, saindo de seus carros amarelados, sob um céu amarelado e sorrisos também. Quem são vocês pessoas da minha vida? Nesta noite minha mãe estava em minha casa e a maldita doença do alemão Alzheimer ainda não estava tão avançada, ao menos era o que eu pensava. Sai do quarto e fui para o escritório, sentei-me a mesa e coloquei a caixa empoeirada sobre ela, desatei os laços e espalhei diversas fotos em minha frente. Então chamei minha mãe: "Mãe, senta aqui do meu lado um instante..." Ela se aproximou sorrindo, sentou na cadeira ao meu lado e pedi que me dissesse quem eram aquelas pessoas das fotos, seus nomes, de onde eram, se estavam vivas... Eu acreditava que sua doença era inicial e que o estímulo de ver aquelas rostos iria abrir uma cortina na sua memória, mas infelizmente ela só reconheceu o rosto da minha avó. "Essa é a minha mãe..." Mais de duzentas fotos diante de nós e ela só conseguiu me dizer quem era a sua mãe. Senti uma fisgada no peito, uma sensação ruim de querer limpar um vidro opaco sem um pano nas mãos, uma sensação de ter dormido no meio do filme e despertado quando os letreiros estavam subindo. Empurrei algumas fotos para o lado disfarçando minha frustração e ansiedade, até que uma foto em especial ficasse bem visível no centro de outras tantas espalhadas em sua volta, e perguntei: “Quem é esse, mãe?” Ela disse num tom incomodado: "Não sei, meu filho..." Eu insisti: "Olha com calma, mãe. Quem é esse cara da foto?" Ela me deu a mesma resposta ainda mais incomodada: "Já disse que não sei quem é, meu filho..." Me vi diante de uma porta trancada e sem maçaneta, como se tivesse perdido um bem precioso sem ideia de onde pudesse estar, me senti órfão; minha mãe não reconheceu a foto do meu pai. Fiquei calado sem saber o que dizer e minha mãe foi aos poucos murchando triste; sobre mim uma tempestade relampejava sem fazer som, e embalados por esse silencio olhávamos a foto do meu pai sorrindo abraçado com ela. Dona Malvina se levantou tão devagar que achei que estava se ajeitando na cadeira, foi lá pra dentro em silencio. Coloquei as fotos de volta na caixa empoeirada deixando a foto deles dois por cima das demais, dei o mesmo laço em forma de cruz com o barbante de algodão grosso, como se nunca tivesse sido desfeito e devolvi a caixa para o fundo da prateleira mais alto do armário; e lá permanecem até hoje, como sepultados, os rostos sorridentes e sem nome que um dia fizeram parte da minha vida. 


15-10-2012





segunda-feira, 1 de outubro de 2012

CIPRIANO MORREU...




Carta para Berenice



Um negro musculoso e de expressões sisudas cavalga em disparada por terrenos irregulares, golpeia, vez por outra, o lombo suado do seu cavalo. O Sol dava sinais de desistir de brilhar e vai se entregando, lentamente, aos contornos do relevo à distância. Seu nome é Chalaça e seu objetivo é chegar ao seu destino um pouco depois do anoitecer daquele dia. Era início da primavera de 1918 e nem tudo que acontecia tem o perfume das flores. O cavalo bufa e o chicote estala na mesma proporção em seu lombo. O céu parecia uma palheta de um pintor confuso, suas cores misturavam aos tons do fim da tarde com as virgindades da noite. Ao longe Chalaça consegue ver o grande portão da fazenda Santa Tereza, em Conservatória, aos pés da serra fluminense. Ao chegar, apeia seu cavalo quase jogando-o para longe, corre escadaria acima da casa principal e esmorra nervosamente a porta várias vezes; seu porte musculoso fez as batidas ecoarem como trovões num dia de verão. Os cachorros latem nervosamente, mas nenhum deles tem coragem de se aproximar de Chalaça. Com uma lanterna de querosene nas mãos, uma mulher muito branca e muito magra vem atender a porta. Era Berenice, filha do senhor Durval Braga, dono da fazenda. Ao ver com espanto o autor das batidas, Berenice diz apenas: "Chalaça!!!" A presença desse negro anunciava descaminhos... Ele tira de dentro do seu velho chapéu de feltro, um envelope sujo e amassado, uma carta; e diz: "Sinhá, ele não passa dessa noite... Disse pra te entregar essa carta na tua mão. Lê, por favor!" Berenice estende a mão e pega o envelope. Olha para aquele homem forte e segura o choro ao responder: "Vai descansar. Chama Esmeralda para te por a mesa..." Antes de subir ao quarto, para no primeiro degrau da escada, vira-se o suficiente e diz baixinho: "Obrigada!" Na manhã seguinte, na hora da ordenha das vacas, Chalaça, Berenice e seus filhos, estão prontos para seguir para a capital, mais diretamente para a região de Inhaúma, na capital, e todos vestem-se de negro.

O enterro
                                                                 
Um vento frio de fim de tarde arranca com as mãos as folhas secas das árvores e as joga para cima, caem como confetes sobre o cortejo. Era o momento de glória dessas folhas, a euforia de estarem livres e independentes, como se o propósito de suas vidas se resumisse no curto voo entre a árvore e ao colo do solo, recebendo-as indiferentes; depois secariam até que restasse o pó que as consumissem... As ferraduras sobre o calçamento irregular de pedras, e o vento forte, eram os únicos sons que se ouviam naquela rua de pouco movimento. Os cavalos que puxam o cortejo estão cabisbaixos, não que lamentassem o destino do seu passageiro, estão apenas cansados e com fome. Sr. Dionísio permanece calado e de olhar fixo no vazio, sabe-se lá o que vai a pensar... Sentado ao lado do condutor que traz o corpo do seu filho, vez por outra balbucia frases sem sentido. Sua nora, seus netos, parentes e empregados aguardam sua chegada. Cipriano Leite-Roque, seu único filho, fora velado em casa e será enterrado no cemitério de Inhaúma. Cipriano nasceu no segundo império e morreu na jovem república. Padre Ambrósio, com sua túnica branca desgastada e puída no ombro, segura a bíblia entre as mãos. O enterro foi preparado as pressas, assim como a lápide simples de mármore branco e em poucas palavras, feitos da melhor maneira que o tempo permitiu. Cipriano mencionou certa vez que não desejaria flores no seu velório, se estava embriagado de vinhos ou se era brincadeira, o certo é que seu desejo estava atendido. O grupo presente era pequeno e padre Ambrósio não precisou falar muito alto; na verdade seu tom de voz ficou no preciso tom da despedida. Ditas as preces e os preceitos da cerimônia, o caixão baixa a sepultura lentamente. O sino de uma capela próxima repica cadente, impessoal, distante... Vez por outra a borda do caixão raspa nas paredes de terra e leva sobre si, de carona, um punhado de terra. Em menos de uma hora tudo esta terminado. Cipriano se vestiu de cova e os presentes deixam o cemitério e se espalham. 


... o último dia

Poucas horas antes Cipriano mandou chamar Chalaça ao seu quarto. Estava pálido, enfraquecido, ofegante... A tuberculose havia tomado todo o pulmão esquerdo e no direito restava pouco espaço para respirar. Silenciosamente Chalaça se aproxima e se coloca ao pé da cama com a mão apoiando o rosto. Falou baixo com voz grossa: "Tô aqui patrão..." Cipriano abre os olhos com dificuldade. Tenta sorrir, mas só consegue tossir. Sua fala é arrastada, parece embriagado: "Não me chame de patrão, negro! Tem sido por todos esses anos mais do que um servo, um amigo, é o irmão que não tive. A tua fidelidade sempre me acompanhou, assim como, conhece meus segredos como ninguém. Esse é nosso último encontro, mas quero te fazer um pedido desse teu irmão branco." Com a mão trêmula tira por debaixo dos lençóis o motivo de ter mandado chamar Chalaça - uma carta a Berenice: "Leva essa carta junto ao peito, não se desvie para a direita e nem para a esquerda. Vá como uma flecha e coloque-a nas mãos dela. Te faço esse último pedido, meu amigo, meu irmão..." Chalaça estava confuso diante daquilo que não poderia dominar com sua força física, diante de coisas que dizia respeito apenas às decisões de Deus. Sentia-se pequeno, sentia-se apenas humano... Cipriano estende a mão e pede que Chalaça ore com ele: "Faz esse oração comigo e depois faça o que te pedi". Chalaça pega na mão fria de Cipriano, fecha os olhos e ouve sua voz tremula dizer: "Senhor Deus! Concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as coisas que posso, e sabedoria para saber a diferença. Vivendo um dia de cada vez, desfrutando um momento por vez, aceitando as dificuldades como o caminho da paz. Tomando, como "Ele" fez, este mundo pecaminoso como ele é, não como eu gostaria que fosse. Confiando em que Ele fará todas as coisas certas se eu submeter-me a sua vontade. Que eu possa ser razoavelmente feliz nesta vida, e infinitamente feliz com Ele, para sempre, na próxima. Amém." Ao fim da prece Cipriano afundou no travesseiro, parecia sufocado, entregue. Deu seu último olhar a Chalaça, que respondeu com o mesmo olhar de despedida e partiu... Horas mais tarde o senhor Dionísio manda chamar às pressas o médico. Cipriano não voltaria a ficar lúcido novamente e morreria no início da noite com seu pai chorando debruçado sobre seu corpo. Dez de agosto de 1918, com apenas 28 anos, Cipriano morreu... Morreu numa noite de lua azul.


... a carta


"Berenice, minha muito estimada esposa e senhora de minha vida. No momento em que escrevo essa carta ainda somos marido e mulher, mas já não seremos no momento da sua leitura. Você foi o verdadeiro sentido dessa minha vida que está por terminar. Pareço louco em dizer, mas esse longo e torturante processo de separação, o maior desastre da minha vida, tem sido a luz do sol do meio-dia a remover sombras e vultos dos meus pensamentos. Consigo te ver hoje, distante do teu convívio, através de lentes novas, lavadas em água cristalina, em cores vivas e brilhantes. Envergonho-me em dizer, mas escrevo chorando, as lágrimas gotejam como uma torneira que pinga. Choro por ter te recebido de Deus ao meu convívio, mas que não soube florescer e preservar esta fortuna, pois, descuidado, derramei álcool em minha vida e tentei secar com o calor das chamas. Foi preciso a luz da separação rasgar de ódio as trevas do meu entendimento, para me fazer enxergar a sutileza e a beleza da nossa relação e das coisas que me fizeram apaixonar-me por você. Essa luz, tecida de dor na agulha do vazio, acorda comigo e não me abonadona nem em sonhos. Levou algum tempo para que meus olhos não se ofuscassem tanto, pois quem vive por muito tempo nas sombras, enxerga na luz um inimigo, até que os olhos, ao se acostumarem com a sua presença, percebam que eles também são feitos de luz. Passei a me enxergar com tanta clareza que me deu medo; é mais confortável conviver com a versão do que com os fatos. Hoje entendo que ser homem é ser o guardião do crescimento da mulher, ser homem é ser a testemunha da sua graça, é estar presente diante da sua vida, das coisas que sente e em que acredita. Agora sei que o maior dos prazeres não é o que sai de mim, mas o que eu enxergo em teu rosto! Te amei quando te vi pela primeira vez e já te amava antes de ter te conhecido. Te amava no ventre de tua mãe, pois os contornos do teu coração já eram alvos do meu desejo desde a concepção da minha existência. Eu te amo Berenice! Estou sóbrio da alma e de corpo, ainda que as febres da saudade me consumam até as pontas dos menores pelos de meu corpo, ainda que meus músculos se contraiam e me entortem fazendo do meu corpo a imagem da mais densa saudade e do abandono. Estou doente e vou morrer! Peço-te que me perdoe! Quem fala não é o Cipriano da juventude, mas o que sempre existiu encoberto pela avareza da rebeldia, vestido das cascas da mediocridade, da melancolia cantada por minha ignorância. Queria estar com você agora, queria ter vivido o tempo da secura de nossas peles, enquanto a nossa união faria de nossas almas, crianças felizes. Queria ter podido marcar com lápis, atrás da porta do nosso quarto, o crescimento dos nossos filhos; faz isso por mim. Berenice, o perdão é como adubo no coração e dele faz surgir vida e vida em abundância. Te amo, minha muito amada mulher e esposa. Cuida dos nossos filhos. Cuide de você e se permita casar de novo. Encontre a felicidade que não te causei. Teu. 

Cipriano Leite-Roque."

Essa carta causou um grande efeito na vida de Berenice e de seus filhos. Ela voltou a se casar novamente, 8 anos depois da morte de Cipriano. Sua filha, Ana Alice Leite-Roque Avellar, cresceu e se tornou uma linda mulher. Foi uma ativista dos direitos civis das mulheres; ainda muito jovem participou ativamente dos movimentos do Sufrágio Feminino de 1934 e 1936. Formou-se em Assistência Social e por defender posições contrárias ao governo militar, viveu 2 anos exilada no Chile. Seu filho mais velho foi um dos "desaparecidos". Morreu em 2002 aos 88 anos cercadas de 4 filhos, 8 netos e dois bisnetos. Seu irmão Lucas Leite-Roque foi um magistrado respeitado, professor, pesquisador e escritor. Participou como jovem deputado da constituinte de 1946 pós a era Vargas. Morreu aos 78 anos, cercado de filhos e netos. Berenice morreu em 1972, já viúva pela segunda vez. Deixou por escrito que desejaria ser enterrada no jazigo da família Leite-Roque ao lado do corpo de Cipriano. Naquele dia distante, no enterro de Cipriano, Berenice jogou o envelope com a carta para ser enterrada junto ao marido. Foi seu jeito de dizer a Cipriano que estava perdoado. Não se conhecem os motivos da separação. Não teve filhos no segundo casamento.

... final

O que sei dessa história, eu contei, mas tenho uma revelação a fazer. Noventa e quatro anos depois da morte de Cipriano fui contratado por uma empresa mobiliária, com sede Administrativa no bairro de Inhaúma, no subúrbio do Rio de Janeiro. Pouco ao redor lembra o mundo de 1918, ano do término da primeira guerra e da morte de Cipriano. Fui da minha casa, em Botafogo, a Inhaúma, de metrô, levar a documentação da minha contratação. Caminhando pela Avenida Pastor Martin Luther King Júnior, um pedaço de mármore branco, meio enterrado no chão, chamou minha atenção.Era o fragmento de uma lápide onde era possível ler: 


JAZ - EITE ROQUE - 890 - 1918 - S ETERNAS - U PAE - E FILHOS. 

Fiquei chocado em ver uma lápide de um jovem morto em 1918, aos 28 anos, diante de mim, quebrada ao meio, suja, servindo de tapa buraco no meio da rua. Não precisei fazer força para imaginar a dor e o sofrimento do "Pae" e dos "Filhos" enterrando há 94 anos o "EITE ROQUE". Jamais imaginariam que a lápide do seu querido um dia estaria no meio da rua. Aquela cena me perseguiu durante o dia e pedacinhos de ideias foram se juntando ao redor dos meus devaneios, densificando, cristalizando, o que acabaria virando essa história.


Tudo que escrevi é um simples romance, nomes, texto, imagens; nasceram de mim como fetos que desejam o ar que respiram... A única verdade é a foto da lápide quebrada de alguém chamado "EITE ROQUE", meio enterrada e perdida na calçada de um bairro do Rio chamado Inhaúma. 
Que Deus o tenha.


Ricardo Cacilias
     30-09-2012