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sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O HOMEM QUE SABIA ASSOBIAR...

vou contar o que sei sobre
König Callaghan



Foi há muito tempo...
Há pessoas que dizem que isso é história de velhas tecedeiras para passar o tempo, enquanto trabalhavam a lã sob o Sol fraco da primavera; mas há quem afirme que König Callaghan existiu e ainda levantam o braço para apontar onde ficava sua casa. Foi no início do verão de 1938 na quase deserta península de Fanad, no condado de Donegal, extremo norte da Irlanda. Numa noite que poderia ser qualquer noite de neblina sem estrelas, sobre os rochedos salgados das encostas, próximo ao antigo farol, uma pequena pluma se aproxima cavalgando, hora agarrada numa brisa, hora em outra. Subia, caia, flutuava, mas parecia seguir um traçado imaginário entre ela e o seu destino. Ao passar por uma das poucas casas que havia lá embaixo, a pluma foi perdendo altura suavemente, parecia parada, mas se movia quase em linha reta; de um jeito que deixou o vento forte da madrugada sem entender tamanha serenidade. Ela pousou no telhado de uma casa, junto da chaminé, e ali ficou. A casa era de König Callaghan.
Callaghan era um irlandês carrancudo e mal humorado, que vivi ali sozinho havia muitos anos. Ninguém sabia ao certo sua idade, uns diziam que ele tinha 50, outros que já passava dos 70; seu mau humor e rabugice mantinha a todos longe do seu convívio. A casa de Callaghan havia sido construída por seu avô e fora reformada anos depois pelo seu pai, o velho Sean Callaghan, um pequeno criador de ovelhas da região. Era uma casa de pedra caiada com um telhado de palha, colhida no verão nas ceifas do campo. As palhas eram trançadas em cordas e as pontas fixadas em estacas de ferro cravadas na parte de cima das paredes grossas. Era uma técnica antiga, mas eficiente, resistia muito bem aos constantes ventos que vinham junto com o outono. No inverno mantinha a casa aquecida e no verão espantava o calor.
Casa da família Callaghan 
Sec. XX - Anos 30
Todas as noites riscos de luz do Farol de Fanad, a poucas milhas de sua casa, entravam pela janela adentro do seu quarto voltada para o norte. A luz do farol vinha para provocá-lo, incomodá-lo com a lembrança de um mundo vivo e vibrante, além das paredes da sua vida. Nem sempre fora assim, sua casa já esteve cheia de pessoas, uma família, mas as circunstancias que molduram o tempo tratou de levar um a um embora. Na manhã de um domingo nublado o velho Sean não acordou, morreu de velho, disseram. Colocaram seu corpo junto ao da esposa, no pequeno cemitério do vale. Callaghan pareceu
não se importar muito, depois dos cumprimentos dos vizinhos, foi para casa, sentou-se na frente da lareira e ficou por horas olhando a dança das chamas, vez por outra tragava seu cachimbo com força, mas deixava a fumaça sair lentamente dos seus pensamentos; sua esposa o deixou quieto com suas lembranças. Num outro dia, com um assobio alto e agudo, chamou seu cachorro para comer e entrou em casa. A botija de comida ficou cheia durante todo o dia e a noite inteira. Na manhã seguinte Callaghan se abaixou para pegar a botija, a esvaziou batendo contra o machado cravado num toco de madeira, olhou para longe com uma leve pressão das sobrancelhas sobre os olhos, respirou fundo, inclinou a cabeça e entrou pra dentro de casa... Cathleen era uma mulher silenciosa, aprendeu a agir e a se movimentar conforme os humores do marido. Tiveram dois filhos. Os quatro pareciam imagens em movimento, como peças que compunham a decoração da casa. Apenas estavam lá. Haviam distancias provocadas por um coração amarelado, como as páginas de um livro que não se pode mais ler, pois o tempo desgastou o seu texto... Por fim, um dia ao voltar da lida do campo, como aconteceu com seu cachorro, sua mulher e filhos não apareceram para almoçar, colocaram seus motivos na mala e se foram também. Ao chegar em casa Callaghan encontrou sobre a mesa da cozinha o almoço pronto, um prato e talheres. Sentou-se como se já entendesse o que havia acontecido. Almoçou olhando para porta aberta, talvez esperasse que voltassem, talvez pensasse em segui-los, talvez apenas olhasse... Um tempo depois recebeu uma carta da cidade de Cushendall, mas nunca abriu. Guardou a carta debaixo de botas velhas no quarto que era dos seus pais, e ali ficou. Durante o dia, conforme a direção do vento, era possível sentir o cheiro forte da maresia e a noite, misturado com as brumas, o cheiro doce das matas primitivas que cresciam nos campos ao redor e nas montanhas mais ao longe. Num certo dia, após uma manhã de rotina de trabalho com algumas ovelhas e plantações, Callaghan havia almoçado seu carneiro pincelado com mel, recheado com folhas de hortelã e algumas batatas assadas. Ele não gostava de cozinhar, mas essa comida em especial lembrava sua mãe; foi com ela que ele aprendeu a fazer. Ele tinha oito anos quando a senhora Nolan morreu de tuberculose. Isso foi um desastre na sua vida. Talvez como defesa de uma criança triste, ele criou uma fantasia na sua cabeça de que sua mãe não havia morrido, mas ido visitar parentes do outro lado da Irlanda e que ela voltaria um dia. Desceria a colina ao seu encontro, como fazia quando voltava para casa e ele correria em sua direção. Callaghan não viu o corpo de sua mãe, o caixão permaneceu fechado até ser baixado a terra, como era costume fazer naqueles dias quando alguém morria dessa maldita doença; isso só fez aumentar o seu sentimento de que sua mãe estava viva... Mesmo agora, velho e amargurado, em algum lugar daquele coração seco havia a umidade da sensação de ver a senhora Nolan descendo colina abaixo, voltando pra casa... Naquele  almoço  bebera  uma
caneca a mais de vinho do que de costume, ao pensar em sua mãe, levantou a caneca como a um brinde e a esvaziou em poucos goles. Resolveu caminhar pros lados do farol para desgastar a comida e o vinho, o trabalho que esperasse um pouco. Após andar por meia hora, sentou-se numa pedra arredondada junto a um tronco seco e recostou-se, a brisa acariciou sua barba, as sombras das folhas, filhas do Sol e o vento, dançaram sobre seus olhos e ele se entregou ao sono... Estando em sono profundo foi despertado ao ouvir o seu nome. Seus olhos abriram assustados e ao se virar levantou-se lentamente e assombrado. Viu a imagem de Cathleen e de seus filhos vestidos de fantasma. Estavam a sua frente silenciosos, apenas olhavam. Seu espanto não foi maior do que seu medo, muitos anos se passaram sem ter recebido sequer uma visita, ainda mais assim, de pessoas que não pisavam no chão... Nada falou, não se moveu, apenas se olhavam. Seu coração se debatia como as asas de uma gaivota presa na rede de pesca, seu peito tremia, um terremoto foi revirando as terras da sua emoção, ou antes, melhor, foi colocando as coisas no lugar... Saudade misturada com arrependimento, misturados com solidão, misturados com ventania, misturados com o vazio que nada mistura... Callaghan levantou suas mãos como se quisesse toca-los... Seus fantasmas sorriram e ele sorriu também, mas junto veio um pranto e ele caiu por terra e chorou muito...
Não se sabe quanto tempo se passou, mas quando Callaghan se levantou o Sol já não podia ser visto, estava atrás da linha do mar e no céu restava uma explosão de cores confusas que nem definiam a noite e tão pouco lembravam o dia. Ele olhou em volta e estava só, procurou seus óculos, limpou a roupa suja de terra e chegou a pensar o que diriam se o vissem daquele jeito caído no chão como um bêbado... O que aconteceu? A explicação não era tão importante quanto o efeito produzido... Um véu qualquer foi rompido entre ele e a sua vida, parecia que seu coração havia sido lavado com a água salgado do mar a sua frente. Voltou para casa caminhando lento, olhar perdido sobre o mato seco e os cascalhos do caminho. De repente, veio de dentro, do mais fundo do que ele poderia sentir. Callaghan começou a assobiar uma antiga canção irlandesa. Seu rosto abriu iluminado e um enorme sorriso adormecido cresceu debaixo do seu nariz... 
Ele assobiava e sorria...
Naquela noite König Callaghan foi se deitar mais cedo, as primeiras estrelas ainda estavam acendendo quando seu corpo afundou no colchão de lã de ovelha que pertencerá a seus pais. Por alguns instantes seu olhos deslizaram pelo madeiramento manchado do teto como se procurasse alguma coisa... Novamente e como em todas as noites, riscos de luz do farol da península invadiram sua janela, mas dessa vez sua raiva costumeira deu lugar a um sentimento de boas vindas. Um leve sorriso de cumplicidade surgiu no canto da sua boca. A decisão estava tomada, nas primeiras horas do dia seguinte pegaria seu boné e iria para Cushendall, iria atrás do endereço do envelope, que um par de botas velhas guardou por anos. Iria procurar seus fantasmas que viviam por lá. E adormeceu...
Neste instante um vento quente suspirou lá fora e tirou do lugar à pequena pluma que estava junto à chaminé. Ela elevou-se no ar, rodopiou várias vezes, subiu, subiu, até perder-se entre as nuvens... 
O verão estava apenas começando...

Lighthouse at Fanad Head, Donegal Peninsula, Co. Donegal, Ireland



 06-01-2012






 Conheça a terra do König Callaghan,
    Península de Fanad, no condado de Donegal, 
    extremo norte da Irlanda.  
           .
  

4 comentários:

Anônimo disse...

Adorei!
Parabéns Ricardo, q texto lindo!

Ricardo Cacilias disse...

Obrigado amigo. Todos os locais mencionados são verídicos, apenas o nome e a foto do Sr. König Callaghan são mentirinhas minhas... Acho que cada um tem um pouco do König e podemos extrair alguma coisa boa daquela redenção. Pena que a receita do carneiro com mel e hortelã não veio com a história... Fique em paz e seja Feliz.

Rita Valente disse...

O renascimento através "Auto" perdão!!! Pode ser, escrevinhador??
É sempre bom te ler...

Ricardo Cacilias disse...

É sempre bom quando você vem, me faz companhia. Obrigado. Um beijo.