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sexta-feira, 20 de julho de 2012

A SIMPLICIDADE DE UM OLHAR...


Talvez um olhar mais simples das coisas, tivesse me deixado mais alegrias nas lembranças. Estou farto desse meu olhar específico, de querer sempre ver o significado da imagem. Estou cansado desse meu olhar técnico, desse olhar apressado, tão maduro quanto burro, tão estéril e descartável. Como fui petrificar meu olhar? Quem me ensinou que as imagens podem ter mil histórias, quando a mais bela é o instante em que a vida roça em suas bordas? Queria voltar a ver como uma criança, me surpreender, me emocionar, me deixar envolver livre das reservas que a vida foi pendurando em meus olhos... Tive olhares que me renderiam músicas, mas tive pressa de entender a melodia. Tive olhares que me trouxeram cheiros, mas estava atarefado demais para aprecia-los. Tive olhares que foram os mais importantes da minha vida, mas estava ocupado com os ajustes da máquina, enquanto passavam diante de mim na velocidade que um rio profundo pode ter. Não tive a decência de acolhê-los em seu tempo real e nem a sabedoria de reconhecê-los como sendo únicos. A vida não se rebobina para rodar novamente diante dos nossos olhos. Por isso tenho imagens em minha lembranças sem cheiros, sem brilhos, sem som... Apenas imagens. Eu devia ter apreciado mais, deixado o sol me ofuscar, o cheiro me inebriar, as cores me lambuzarem, e teria muito mais do que fotos na caixa, teria lembranças para me aquecer e me fazer sorrir. A fotografia registra em papel um instante, mas estar de alma presente vivendo o momento, é poder justificar um espírito ter ocupado um corpo e nele vivido intensamente.

20-07-2012



quarta-feira, 18 de julho de 2012

LADRÃO DE CRIANÇA - PARTE 2



Continuação do texto: 
Ladrão de Criança - Parte 1
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“Parecia uma miragem olhar para aquele espaço vazio onde antes estava o ônibus que eu iria com minha família para o Rio. Fui tomado por um estado de patetice profunda, afinal eu não sabia o que havia acontecido, onde estava Tere e o que eu iria fazer em seguida?... Foram poucos segundos onde me senti a pessoa mais perdida do mundo. Enquanto pensava, foi se aproximando um homem jovem, uns 20 anos talvez, empurrando um carrinho de ferro que usava para carregar bagagens de passageiros para um taxi ou o que seja. Ele parou do meu lado e perguntou”: – Tá procurando aquela moça? “Olhei para o sujeito sem entender nada...” – O que disse? – Tá procurando aquela moça que estava contigo? “Fiquei espantado de ver como somos observados e temos nossos movimentos acompanhados sem nos darmos muita conta disso.” – Sim. Sabe onde ela está? – O motorista disse a ela que não iria poder esperar mais, que tinha que cumprir o horário ou seria chamado a atenção. Alguns passageiros desceram do ônibus perguntando o que estava acontecendo, aquela moça contou que você tinha ido ao juizado. O motorista subiu no ônibus e ligou o motor. Os passageiros foram subindo e uma senhora falou para ela: – Vem também, não perde a passagem, ele vai amanhã em outro ônibus... “Fiquei zonzo com essa história...” – E o que ela fez? “Perguntei já com medo da resposta.” – Ué, ela entrou e foi embora... “A única palavra que me veio à cabeça naquele momento foi: pu-ta-que-o-pa-riu! O ‘cara da mala’, que viu tudo acontecer desde o início, deu uma ideia” – Não faz nem 10 min que o ônibus partiu. Vai até a entrada da rodoviária e pega um táxi, se o motorista for ligeiro você alcança o ônibus na rodovia Osório Porto Alegre antes de chegar a Cachoeirinha. “Parecia à ideia mais estúpida do mundo, eu sem dinheiro, sem documentos, a Renata dormindo no meu ombro, mas foi o único plano que surgiu. Agradeci aos dois e fui para o ponto do táxi. Procurei o motorista mais velho, assim teria sua sensibilidade do meu lado”. – Bom dia, senhor. Eu perdi o ônibus que saiu agora a pouco da rodoviária. O senhor tem como alcança-lo? “Achei que estava dizendo a coisa mais sem pé nem cabeça do mundo, mas depois esse mesmo motorista de taxi disse que vez por outra alguém aparece pedindo para alcançar um ônibus na estrada. Era um senhor de boné velho, barba mal feita e beiços caídos. Sem me olhar direito perguntou”: – Ele está indo pra onde? – Para o Rio e saiu faz uns 10 minutos. “Meu plano era alcançar o ônibus, pegar o dinheiro com a Tere e pagar o cara”. – Vamos ter que ser rápidos... Sobe ai. “Sentei no banco de trás, e o táxi saiu cantando pneus... O cara era bom! Na medida em que fomos acelerando, meus dedos dos pés foram se enrolando por dentro do sapato” – Você está fugindo? – Como? Eu fugindo? Claro que não!... – Mas cadê as malas? Você perdeu o ônibus e vai viajar sem malas?? “Expliquei o que havia acontecido desde o início, foi quando ele me olhou e deu uma gargalhada, isso me fez sentir um completo idiota!! Os números do taxímetro mudavam rapidamente... Os minutos só aumentavam a minha ansiedade. Sem saber o que dizer, ele disse antes": – A lá o ônibus... Achei!!! “Como ele podia reconhecer o ônibus pela bunda e saber que era o meu ônibus?? Ainda perguntei: – Tem certeza? – Vou ultrapassá-lo para que você possa ler o destino dele. “Não deu outra, era realmente meu ônibus indo para o Rio... O motorista do táxi começou a buzinar e colocou a mão esquerda para fora da janela acenando freneticamente. O motorista do ônibus respondeu piscando as luzes do farol duas vezes e foi diminuindo a velocidade. O táxi fez o mesmo. Eu, agarrado na Renata, estava assustado e me perguntava como eu havia me metido naquela situação. Nisso, dentro do ônibus, todas já sabiam da história do ‘cara que esqueceu a certidão da filha’. Tere me contou mais tarde, que quando o motorista do taxi apareceu buzinando, o motorista do ônibus olhou para trás todo animado e gritou”: – Teu marido chegou... “E os passageiros reagiram com risos e aplausos... Ai, que vergonha! Saí do taxi e a porta do ônibus abriu. Subi com o papel da autorização do juizado numa mão e a Renata na outra. O motorista bateu em minhas costas e disse": – Mas tu ‘es muy guapo’, tchê! ”A mãe da Renata veio correndo e abraçou a nossa filha... Só consegui fazer uma pergunta a ela:" – Porque você fez isso? "Até hoje me sinto envaidecido com a resposta.": – Você disse que iria resolver, então acreditei! – Tenho que pagar o táxi! “Ao ouvir isso, um passageiro próximo disse": – Mas não vai mesmo, tchê, nós vamos cuidar disso. “Pegou um jornal, enrolou em forma de cuia e foi recolher dinheiro entre os passageiros, não teve quem não tivesse colocado algum no jornal. Voltou com a cara corada de alegria e me entregou o jornal com o dinheiro dentro." – Agora tu podes pagar o táxi... "Meu sorriso amarelou de vez. Tere me cutucou as costelas e disse baixinho": – Aceita. Não vai fazer desfeita com a atitude deles. "Acenei e agradeci a todos. Desci para pagar o motorista e vi que havia mais dinheiro do que o necessário para pagar a corrida, quase três vezes mais... Finalmente pude sentar em minha poltrona. Havia um clima de fim de filme da ‘sessão da tarde’ dentro do ônibus; todos ficaram felizes com o desfecho. As pessoas são, em sua essência, boas criaturas, se deixarmos um fiapo de oportunidade pra fora, elas vão naturalmente exercer o seu cuidado com o próximo. Tão logo coloquei minha cabeça no encosto do assento e apaguei. A tensão nervosa havia consumido minhas reservas... Acordei em Santa Catarina, na parada do ônibus para o almoço, com a Tere me balançando o ombro”: – Vamos descer? – Vamos, estou morrendo de fome! “Enquanto seguíamos para o balcão fazer um lanche, coloquei a mão no bolso e lembrei que havia sobrado dinheiro da arrecadação dos passageiros para pagar o táxi. Falei todo animado:” – Lanche que nada. Vamos para a churrascaria dessa rodoviária... “E assim fizemos, fomos comer picanhas e linguiças, saladas e farofas enquanto os outros passageiros foram fazer um lanche no balcão... Como sempre é a mulher que se ‘toca’ nos detalhes. Tere me puxou a manga e disse:” – Ricardo, estamos só nós do ônibus comendo na churrascaria, os outros passageiros estão fazendo lanche, não vai ficar chato? Com minha característica ‘cara de pau’ sintetizei tudo com uma frase: – Relaxa Tere, certamente estão todos felizes por estarem nos proporcionando isso... “Dessa vez deixei a consciência falando sozinha, e fui encher a cara de carne sulista, suculenta e deliciosa; e nunca mais esqueci uma certidão de nascimento de um filho em minhas viagens."


Ricardo Cacilias
      18-07-2012



sexta-feira, 13 de julho de 2012

LADRÃO DE CRIANÇA - PARTE 1



Nossa, que noite fria... Eu estava deitado lendo o livro 1808 de Laurentino Gomes e parei para fazer um café. Quem sabe meus pés esquentariam?!? Voltei ao quarto com o café fumegando; seria a minha única companhia dessa noite, a fumaça do café dançando em volta do meu rosto enquanto esvaziava lentamente a caneca. Procurei o cachimbo, mas sem muita vontade de acendê-lo, desisti. Sentei enfrente ao laptop, estava desligado como se dormisse. Certas coisas dão mais peso a esse meu estado de solidão, ver TV, por exemplo, se estou sozinho não gosto. Com quem vou dividir meu riso, meus comentários e a escolha do canal? A maior prisão é ser dono de seu tempo e de sua vida, pois se não temos com quem gasta-los, de que vale ser rico numa ilha deserta? Tomei outro grande gole de café. Tenho uma mente zelosa, pois para proteger-me dessa companhia chata que sou, ela escolhe uma parede vazia e começa a pintá-la de uma luz meio azulada. Toda vez eu caio nessa... Olho com atenção para essa mancha iluminada e aos poucos vão surgindo rostos, movimentos, depois vem o som e quando percebo estou assistindo algum filme que participei vivendo. Forcei meus olhos e vi, através dessa janela surgida na parede, a mãe da minha filha mais velha me perguntando se eu queria café. Estávamos na rodoviária de Porto Alegre numa manhã de janeiro de 1983. Eu tinha 24 anos. Era a primeira vez que Renata iria para o Rio visitar os avós, meus pais. 
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– Quero sim Tere, vai comprar onde? – Ali. “Ela apontou para uma lanchonete e saiu. Faltavam apenas 20 min para o ônibus partir. Renata estava no meu colo brincando com uma bonequinha de pano que sua avó materna havia feito, tinha apenas dois anos. Era uma ciança muito linda e inteligente apesar de ter o seu peso em timidez. Tere voltou com dois copos de plásticos com café. O “cara da mala” abriu o compartimento de bagagem na lateral do ônibus e os passageiros foram se aproximando. Tere já queria guardar as malas, mas eu, como sempre, cheio de estratagemas disse”:  Não, melhor deixar que coloquem as outras malas primeiro, pois serão as últimas a serem retiradas lá no Rio. Se colocarmos as nossas por fim, ficarão na frente... “Ela sorriu e aceitou minha argumentação. Quando faltavam apenas 5 min do horário de saída do ônibus, colocamos as malas no bagageiro. Renata agora estava deitada em meu ombro dormindo, havíamos acordado muito cedo. Morávamos em Novo Hamburgo distante duas horas de Porto Alegre. Estávamos ansiosos por essa viajem e cada detalhe foi pensado com muito cuidado, com exceção de um. O motorista falou": – Bilhetes... – Aqui. “Entreguei nossas passagens já sentindo aquela excitação de estar começando uma viajem...” – Certidão de nascimento da menina... “Repeti a frase como um papagaio bêbado”: – Certidão de nascimento da menina? – Sim, sem a certidão ela não poderá embarcar. “Minha mão imaginária deu um tapa na minha testa. Eu havia esquecido a certidão. Tentei argumentar, mas o motorista foi taxativo, sem a certidão Renata não entraria naquele ônibus, mas deu uma ideia":  – Depois daquela banca de jornal tem uma sala do juizado de menores, vá lá e peça uma autorização, talvez consiga... “Olhei para Tere e disse”: – Deixa que eu vou, eu resolvo isso. “E pedi ao motorista": – Me espera, por favor... “Ele só levantou os ombros. Saí correndo com a Renata balançando pra lá e para cá... Entrei na sala do juizado abruptamente, estava vazia e tinha um senhor sentado diante de uma máquina de escrever lendo jornal”: – Bom dia, senhor. Eu e minha mulher estávamos embarcando, mas esqueci a certidão de nascimento e o motorista não me deixou entrar com ela. “E olhei para a Renata. O funcionário levantou-se lentamente me olhando sério": – Posso ver seus documentos? “Na pressa havia deixado tudo com a Tere, carteira, dinheiro, passagens...”: – O senhor me desculpe, mas na afobação de chegar até aqui com o ônibus prestes a partir, deixei tudo com minha mulher. “E muito inocentemente disse a ele”: – Eu só preciso de uma autorização do juizado para viajar... “O sujeito apertou um botão debaixo do balcão e em poucos segundos surgiu na porta um policial, um brigadiano como é chamado no sul. Ele tinha uma arma na cintura, devia ter uns dois metros de altura, loiro e cara de oficial nazista.” – O senhor fique calmo, mas tivemos alguns problemas por aqui e estou me cercando de cuidados. Veja, o senhor não pode se identificar e nem a essa criança e quer que eu lhe de um documento, uma autorização para viajar? O senhor faria isso se estivesse na minha posição? “Porra, pensei na hora, ele me pegou! Vi a viajem ir pro 'brejo', me vi ligando para casa dos meus pais dizendo que não iríamos mais. Escutei meus pais dizendo onde eu estava com a cabeça que havia esquecido algo tão óbvio e blá, blá, blá... Bom, mas ter saído de casa e ido morar em outra cidade e em outro estado, me fez descobrir um Ricardo que eu não conhecia enquanto morava com meus pais: o negociador. Foi o que fiz...”: – Como o senhor se chama? – Carlos Affonso.  – Sr. Carlos, por favor, ligue para a companhia de ônibus e pergunte se no ônibus para o Rio das 09:30 consta na lista nossos nomes, Ricardo e Teresinha. Sou eu e a mãe dela. “Cheguei a ficar surpreso, mas ele fez exatamente o que eu havia pedido, e confirmaram nossos nomes na lista. Fiquei mais confiante”: – Então... eu falava a verdade. Agora por favor, olhe para ela, é a minha cara, não vê que é a minha filha? “Seu Carlos olhou direto nos olhos da Renata e disse levantando as sobrancelhas ": – Essa menina parece com a minha neta... “E saiu de trás do balcão, aproximou-se de nós e estendeu as mãos para pegar a Renata no colo. A Renata reagiu de um modo inesperado, deu um pulo para trás e agarrou-se no meu pescoço e gritou": – Papai!!! Seu Carlos sorriu, hoje penso que ele fez um teste e parece que eu passei nele. Ele voltou para sua mesa, tirou uma folha timbrada da primeira gaveta, redigiu um texto e me entregou a folha dizendo”: – Boa viajem e cuide bem dessa menininha... “Saí correndo enquanto dizia”: – Obrigado! Obrigado! Quando cheguei ao terminal 7, onde o ônibus estava estacionado, só havia uma mancha de óleo no chão e mais nada. O ônibus havia partido... E pior, minha mulher havia sumido. Eu estava sem dinheiro, sem documentos, em outra cidade e com a Renata no colo... 


–  CONTINUA  –


Ricardo Cacilias
         12-07-2012